Na mesma semana em que a Suprema Corte americana revogou o direito ao aborto - direito que havia sido assegurado há 50 anos - tivemos, no Brasil, dois casos também relacionados à questão do aborto. No primeiro deles, uma menina de 11 anos, grávida após ser vítima de um estupro, teve seu direito a um aborto negado por uma juíza. Posteriormente, o procedimento foi realizado, seguindo recomendações médicas e psicológicas.
O segundo caso é da atriz Klara Castanho, que, após diversas insinuações e ameaças de uma apresentadora e um colunista, relatou em uma carta aberta que foi vítima de um estupro, do qual decorreu uma gravidez. A atriz optou por uma entrega voluntária do bebê para adoção, procedimento previsto em lei.
Ambas, a menina de 11 anos e Klara, não passaram somente pela violência do estupro, sofreram reiteradas violências por parte de outros. A menina foi induzida e pressionada pela juíza e pela promotora do caso a seguir com a gravidez, foi questionada se conseguiria "suportar mais um pouquinho". Klara foi ameaçada por uma enfermeira durante o parto, teve o sigilo do procedimento - garantido em lei -, violado. A atriz deixou claro que somente relatou sua história devido à exposição que já havia sido feita, inclusive do local do nascimento do bebê, sexo e peso.
As reações a ambos os casos evidenciam que não se trata de preocupação ou defesa da vida, trata-se de tentar controlar os corpos das mulheres, de privá-las do lugar sujeito, capaz e livre para escolher o que fazer com a própria vida. Espanta e revolta que, em 2022, os direitos das mulheres continuem sendo tão livremente desrespeitados e que não possamos avançar em conquistas nesse sentido. O aborto da menina de 11 anos era um aborto legal e ainda assim foi negado a ela, em um primeiro momento. Em nome de quê? Da posição ideológica da juíza? Da convicção religiosa da promotora? Quem pensou na menina?
Klara Castanho, mesmo procedendo também de maneira legal, foi e tem sido covardemente julgada por muitos. Parece haver por trás desses julgamentos a ideia de que as mulheres devem, a qualquer custo, se dedicar à maternidade. Para muitos, ainda que de maneira inconsciente, o destino da mulher deve ser "ser mãe", inclusive tendo que se reduzir a ele. Daí a incapacidade de muitos de aceitar (como se houvesse algo para aceitar) que mulheres escolham não ser mães. Mulheres que escolhem outros destinos para si mesmas que não o da maternidade ou que não a colocam como único papel a desempenhar, muitas vezes acabam, de um modo ou de outro, sendo punidas.
Os dois casos apresentam diversas camadas que merecem ser discutidas, mas uma que, a meu ver, se destaca e indigna é que ambas as situações se iniciam com um estupro, um crime tipificado no Código Penal. Um levantamento recente mostra que pelo menos 35.735 crianças e adolescentes de zero a 13 anos foram estuprados no Brasil em 2021, dos quais 85,5% foram meninas e 14,5%, meninos. De acordo com a pesquisa, esse número representa mais da metade dos estupros registrados no país.
Esse dados são absolutamente estarrecedores, inaceitáveis, e fazem pensar em quantos outros estupros acontecem todos os dias e não são registrados. Onde está a indignação contra os estupradores, esses sim, criminosos? Onde estão as reflexões para pensar o que enseja a "cultura do estupro"? Onde estão as políticas públicas que possam proteger as meninas, as mulheres? Que lógica perversa esta que trata como criminosas aquelas que foram terrivelmente violadas e que deveriam poder escolher o que fazer com seus corpos e suas vidas, de forma livre e segura.
Simone de Beauvoir já havia alertado que quando há crise política, econômica ou religiosa, os direitos femininos ficam ameaçados. Assim, ainda que espante e indigne, nos tempos atuais, não surpreende que tenhamos nossos direitos reiteradamente desrespeitados.
Impossível não lembrar da série The Handmaid´s Tale (traduzido como "O Conto da Aia"), inspirada no livro homônimo de Margareth Atwood. De modo resumido, trata-se de uma distopia em que o que eram os Estados Unidos passa a ser governado por um regime totalitário que subjuga brutalmente as mulheres. Já em 2017, quando foi lançada, era possível ver semelhanças com o que víamos aqui. Hoje, parecemos cada vez mais próximos.
Quando nos vemos espelhados em séries distópicas, é sinal de que o retrocesso já está instalado e de que precisamos urgentemente agir. Porque não, não dá para "suportar mais um pouquinho".