Essa semana me aconteceram duas situações curiosas, provocadas por essa pandemia infinita. Na primeira delas, eu olhava fotos do perfil de uma conhecida de que gosto muito. Tem cerca de um ano que a conheci e nos encontramos várias vezes. Passei a ter grande carinho por ela, uma afinidade gratuita, daquelas que se mostram rápido. Eu olhava suas fotos, de trabalhos manuais, de seu filho e de repente me deparei com fotos mais antigas em que ela aparecia sorrindo. Foi quando me dei conta de que eu nunca havia visto seu sorriso! E era um sorriso genuíno, daqueles largos, cheios de dente e afeto.

Ela sorria ali, sem máscara, com o rosto livre, mostrando por completo essa configuração singular, do modo como se distribuem no rosto os olhos, nariz e boca, em cada pessoa. Mas o que saltou mesmo foi seu sorriso. Aquilo me emocionou e me doeu. Não fossem as fotos antigas de seu perfil, quando eu viria a conhecer seu sorriso?

A segunda situação também foi promovida por esses acessórios que usamos há mais de dois anos. Participei de uma reunião por vídeo e assim que entrei na chamada, vi que eu não conhecia a pessoa que a havia organizado, nem o nome nem fisicamente. Fiquei me perguntando quem era ela, o que estava fazendo naquela reunião. Uma vez começada, me dei conta de que era a pessoa que venho encontrando todos os dias da semana há cerca de três semanas, mas que eu só havia visto de máscara e que, na chamada, não usava máscara e estava usando seu primeiro nome, que eu não conhecia. Isso me causou profundo estranhamento. Senti que seu rosto, dessa vez visto inteiro, não era aquele que eu, sem saber, havia imaginado, ou desenhado na minha cabeça para ela. Ela era outra.

Essas duas situações, que me provocaram diferentes sentimentos e sensações, remeteram-me ao texto de Freud, tão extensamente discutido, "O estranho", que já dispõe de diversas traduções. O inquietante, o infamiliar, o incômodo, e por aí vai. Talvez devido a esta dificuldade de encontrar uma tradução que dê conta efetivamente do termo, a palavra original usada por Freud em alemão seja comumente lembrada, unheimlich. Dentre as traduções, eu particularmente gosto mais de "O estranho", presente na antiga Edição Standard Brasileira da obra de Freud.

O estranho me faz lembrar da peça "A cantora careca", de Ionesco, do Teatro do Absurdo. Numa das cenas, em um trem, uma mulher e um homem conversam, identificando aos poucos diversas coincidências entre eles; a cidade onde moram, o vagão do trem que pegaram, a casa onde moram, etc. Ao que vão exclamando repetida e monotonamente: "Que curioso! Que estranho!". Ao fim da cena, o casal, que parecia estranho um ao outro, dá-se conta de que são efetivamente um casal, marido e mulher.

Creio que essa cena de Ionesco, absurda e irônica, representa bem muito do que Freud traz em seu ensaio; o familiar visto como estranho, o estranho que é tão familiar. O próprio termo em alemão traz essa ambiguidade em seu significado, algo simultaneamente estranho e familiar, íntimo.

Uma das coisas de que mais gosto no texto de Freud é uma nota de rodapé em que ele conta uma experiência pessoal do "estranho", que coincidentemente também ocorre em um trem. Transcrevo abaixo a respectiva nota:

Estava eu sentado sozinho no meu compartimento no carro-leito, quando um solavanco do trem, mais violento do que o habitual, fez girar a porta do toalete anexo, e um senhor de idade, de roupão e boné de viagem, entrou. Presumi que ao deixar o toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e entrado no meu compartimento por engano. Levantando-me com a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta. Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua aparência (p. 265, Edição Standard).

Quem é esse que me olha no espelho? Ou como eu perguntava na chamada de video, quem é essa pessoa, estranha, presente nessa pequena reunião? O uso de máscaras na pandemia nos roubou sorrisos, promovendo uma experiência do estranho, tornando o que é familiar estrangeiro. O dito "conhecido" se revela outro, deslocando-nos e nos colocando numa espécie de vertigem em que parecemos não saber mais com quem falamos.