Esses dias, lia um livro, quando, distraidamente, me vi pegando outro, o último livro de Tania Rivera, intitulado Psicanálise antropofágica (identidade, gênero, arte). Tive a sorte de ter aulas com ela anos atrás e sempre gosto muito do que ela escreve. Com esse livro não foi diferente, não consegui mais largá-lo. Destaco aqui o capítulo "humor como estratégia política (ou como revidar discursos)". Escreve-se assim mesmo, começando com minúscula, coisa que gosto muito. O que começa minúsculo tem para onde crescer.

Localizando-se no contexto político atual, em que o "tecido simbólico de nossa sociedade se foi esgarçando", permitindo que o maior torturador da ditadura militar fosse homenageado ou pessoas identificadas como homossexuais sejam, hoje, intimidadas e ameaçadas, Tania propõe que façamos resistência ao discurso violento e intolerante partindo de uma estratégia discursiva que promova uma torção das palavras, uma subversão discursiva.

Além de trazer termos - e pautas - que se imponham e destaquem da massa de palavras de ordem fascista, reforçando o laço identificatório entre "nós" que nos opomos a "eles", creio que se trata de explorar outras lógicas, outros modos de enunciação, como aqueles dos chistes, dos sonhos, da poesia. Deslocamentos, metáforas e, sobretudo, um tanto de ironia e paródia. Uma pitada de delírio (p. 39).

Uma das coisas que sempre me chamou muito a atenção, nesses últimos anos, é o quanto é fácil reproduzir no nosso discurso justamente aquilo que criticamos no outro. Ao tentar repelir a agressividade, a violência, a intolerância, muitas vezes o fazemos também de forma violenta, querendo apagar o outro. Claro, pode ser um caminho, mas há algo muito irônico nisso, não?

Por isso, a meu ver, a proposta de Tania Rivera faz todo o sentido, pois convoca a trazer algo de inusitado às coisas, a brincar com a palavra, saindo do registro bruto e hostil. E aí, claro, a psicanálise tem posição privilegiada e, arrisco dizer, tem também responsabilidade, visto que trabalha diretamente no campo da linguagem.

A autora sugere, por exemplo, embaralhar palavras de fake news, inserir em meio a textos denúncias, versos. O jogo é promover um efeito de surpresa, de estranhamento, de descentramento, que possibilite torcer as palavras. Pode-se deslocá-las, mudar a entonação ao dizê-las, transformar a afirmação em pergunta e vice-versa, de modo que se provoque uma coisa outra.

First. First of Many, I guess?

Artist: Unknown
Year: 2015

*ALL CREDITS OF THIS PICTURE GOES TO THE ARTIST*
*IF YOU ARE IN THE MONTREAL REGION AND KNOW WHO THE ARTIST BEHIND THE PAINTING IS PLEASE REACH TO ME*
Photo by Mr TT / Unsplash

Também não pude deixar de lembrar do livro Vamos comprar um poeta, de Afonso Cruz. Trata-se de um livro curto e muito bonito, que se passa numa sociedade materialista, onde tudo é medido de maneira exata, reduzido a números, do espinafre ao afeto. No lugar de bichos de estimação, as pessoas têm artistas. Na família retratada, a menina pede ao pai um poeta e o livro se desenrola a partir dessa compra e de todas as transformações que ela provoca:  

O pai apontou para o poeta que fungava e não tinha patrocínio nas roupas e perguntou se aquele exemplar era subversivo, que é a característica mais temida nos poetas, é o equivalente à agressividade dos cães.

Foi quase um espanto encontrar a frase acima. A subversão do poeta como equivalente da agressividade dos cães. Entrar no jogo direto da agressividade, responder a partir da mesma chave é muito tentador porque nos fala naquilo que temos de bicho, naquilo que temos de destrutivo em nós mesmos e que tanto tem sido acionado nos últimos tempos. Entretanto, responder, resistir, partindo de um certo reviramento, de um ponto inusitado, pode provocar e desorientar quem está do outro lado, tirando-nos da lógica que fere e busca aniquilar, para, quem sabe, fazer pensar. Parece-me que há aí potencial de modificação da realidade, sem que se abra mão de certa dose de agressividade, uma agressividade travestida.

A poesia, diz-me ele, transfigura o universo e faz emergir a realidade descrita com a absoluta precisão da ambiguidade. Nunca li um bom verso que não voasse da página em que foi escrito. A poesia é um dedo espetado na realidade. (...).
O poeta dizia que os versos libertam as coisas. Que quando percebemos a poesia de uma pedra, libertamos a pedra da sua "pedridade". Salvamos tudo com a beleza. Salvamos tudo com poemas. Olhamos para um ramo morto e ele floresce. Estava apenas esquecido de quem era. Temos de libertar as coisas. Isso é um grande trabalho. (Afonso Cruz, "Vamos comprar um poeta").

Salvemos tudo com a beleza, com poemas, com a fina ironia. Espetemos o dedo na realidade sem que seja preciso sangrar. Há muito trabalho pela frente.