A travessia de Paul B. Preciado

Quando era adolescente, nos reunimos uma vez na casa de uma amiga para estudarmos em grupo. O pai dessa amiga, passando pelo lugar onde estávamos reunidas, olhou nossos livros e disse: Assim é melhor jogar o livro dentro de um balde de tinta! Ele se referia ao excesso de grifos e marcações que fazíamos com canetas e marca-textos coloridos, o que talvez indicasse nossa incapacidade de selecionar o que de fato era relevante do que não era. Lembrei dessa cena, lendo o livro Um apartamento em Urano, de Paul B. Preciado, pois definitivamente é um livro que eu jogaria numa lata de tinta fluorescente. Mas ao contrário do que pensava o pai da minha amiga, nesse caso, faria isso justamente pela absoluta relevância de tudo o que o filósofo conta nesse livro.

Já há algumas semanas, entre outras leituras, estou às voltas com esse livro, com as palavras de Paul, suas imagens desenhadas com palavras. Havia feito um esboço para comentá-lo, mas fico sempre com a sensação de que nada dará conta da beleza, da poesia, da urgência, da potência e da ferocidade de sua escrita Há muitas citações que gostaria de transcrever aqui. Faço, então, um esforço de autocontenção para escrever sobre ele.

Um apartamento em Urano reúne o que Preciado chama de "crônicas da travessia", escritas entre os anos de 2010 e 2018 para o jornal francês Libération e outras mídias. O termo "travessia" refere-se à "mudança de sexo" de seu autor. No início do livro, assinava como Beatriz e, ao final, com seu novo nome, Paul Beatriz Preciado.

Nessas crônicas, o filósofo passa pelos mais diversos temas, comenta notícias da época, fala de livros e de escritores, das novas políticas do corpo, de gênero e de sexualidade, reflete sobre acontecimentos históricos, mas sobretudo, conta-nos sobre sua experiência de transição, em textos mais pessoais e íntimos. Presenteia-nos – assim como pode chocar – com um olhar transgressor e afiado por toda a sua erudição, mas também por sua profunda e tocante sensibilidade.

O termo travessia ganha uma nova camada, pois, além de se referir ao processo de mudança de sexo de Preciado, remete a migração, que ele colocará também como metáfora do seu processo de transição. Durante sua travessia, ele viajou por muitos lugares, praticando um nomadismo. E assim vai experimentando um lugar do "entre", do nem cá nem lá, que tantas vezes pode invisibilizar. Mas Preciado não se deixa esmagar, resiste (eu escreveria (r)existe), reivindica e afirma sua existência e a de tantos outros cujas vidas são constantemente ameaçadas de apagamento.

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Em um dos textos, intitulado "Nos braços da Rodina-Mat", Paul conta sobre uma viagem que fez de Istambul a Kiev, perguntando-se sobre aqueles que entravam no avião:

De onde vêm, para onde vão? Eles devem perguntar o mesmo ao me ver lendo em francês, escrevendo em espanhol, falando em inglês. A imagem dos migrantes cruzando fronteiras é o significante universal que nos recodifica a todos. Quem sou eu e o que faço aqui? De que guerra estou fugindo? Com o que trafico? Qual é meu refúgio? (p. 172).

É então que Preciado precisa passar pela imigração, onde um agente acha que o passaporte apresentado por ele não é dele. A fotografia é de três anos atrás e, atualmente, ele tem 250 miligramas de testosterona injetadas em seu corpo a cada 15 dias, o que já lhe deu uma barba, assim como uma voz rouca. Para tentar aproximar a foto e sua aparência atual, responde em falsete:

"Beatriz", (...) acomodando-me à legalidade e pronunciando um nome que agora me soa estranho. Levei nove meses me acostumando a dizer Paul, a responder quando alguém chama esse nome, a virar quando o ouço. Mas agora preciso esquecê-lo. (p. 174).

Após uma breve discussão, em que é questionado sobre ser uma mulher, passa por uma revista invasiva que, por fim, encontra "evidências anatômicas táteis" que confirmam o que constava em seu passaporte. Em seguida, pega sua bagagem e encontra um taxista com um cartaz em que se lê: "Paul".

Em poucos minutos, Preciado cruza e como que "descruza" essa fronteira que tanto lhe deu trabalho e se dá conta do "imperativo da diferença sexual como condição de possibilidade da identidade nacional". Assim, o autor questiona as fronteiras, os limites, as separações e segregações, sejam elas simbólicas, sejam elas concretas, materiais.

Durante o primeiro ano da transição, enquanto as mudanças hormonais esculpiam meu corpo com um cinzel microscópico que trabalha de dentro para fora, só consegui viver no nomadismo. Cruzar fronteiras com um passaporte que mal me representava era então uma forma de intensificar o trânsito, de certificar a mudança. (p. 233).

Em seu nomadismo, faz trânsito, constrói um lugar para si. Ninguém ousa lhe dar um lugar, é ele quem fabrica, corajosamente, um lugar para existir. Como ele nos diz:

A travessia é o lugar da incerteza, da não evidência, do estranho. E isso não é fraqueza, é uma potência (p. 32).

Atravessar Um apartamento em Urano é partilhar um pouco da travessia de seu autor. Havendo disponibilidade e abertura, é inevitável sair transformado de sua leitura, mexido e remexido a respeito de tantas coisas da vida. Trata-se de um livro incontornável para pensar o mundo em que vivemos e aquele em que desejamos viver no futuro. É preciso ler Paul B. Preciado. É preciso ouví-lo.

O antigo regime (político, sexual, ecológico) criminaliza todas as práticas da travessia. Mas a cada vez que a travessia é possível, o mapa de uma nova sociedade começa a ser desenhado, com novas formas de produção e de reprodução da vida (p. 32).