"A Vergonha", de Annie Ernaux: escrever para não ser engolida
Em "A vergonha" (publicado originalmente em 1997), Annie Ernaux – ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura deste ano – conta sobre um evento marcante de sua vida. O livro começa de maneira crua e objetiva, com a seguinte frase: "Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, o começo da tarde.". Para pensar e refletir sobre esse livro, transcrevo ao longo do texto alguns trechos – todos tirados da versão digital do livro –, e vou tecendo comentários.
Do ponto de vista psicanalítico muito se poderia dizer sobre os efeitos desse evento sobre Annie criança e Annie adulta. Trata-se de um trauma, caracterizado por sua intensidade e pela incapacidade do sujeito de reagir a ele proporcionalmente. Ou, para usar as palavras de Ernaux, trata-se de "horror sem palavras".
É típico do trauma seu caráter indizível, inominável; uma experiência da ordem do Real, no sentido lacaniano. O horror a que a escritora se refere leva a uma desorganização psíquica, a um ponto sem volta, como ela descreve abaixo:
Depois, aquele domingo passou a ser uma espécie de filtro que ficava entre mim e todas as coisas que eu vivia. Continuava brincando, lendo, agindo como antes, mas de algum modo estava ausente. Tudo se tornara artificial. Passei a ter dificuldade para memorizar o conteúdo que, antes, com uma única leitura eu aprendia.
Ernaux não desconhece a psicanálise, ao contrário, afirma que se valeu desse recurso, bem como de uma terapia familiar, chegando ao que chama de "conclusões rudimentares" a respeito de sua dinâmica familiar. Essas explicações não bastam a ela, afinal é mesmo de um excesso que estamos falando quando falamos sobre trauma. É na escrita que a autora buscará investigar e elaborar esse acontecimento irreversível.
Escrevo essa cena pela primeira vez. Até hoje, me parecia impossível fazer isso, mesmo num diário. Como se fosse uma ação proibida que traria um castigo. Talvez o de não poder escrever mais nada depois. (Senti uma espécie de alívio há pouco, ao constatar que continuava escrevendo como antes, que nada de terrível me acontecera.).
"(...) por eu ter sempre conservado essa cena dentro de mim como uma imagem, sem nenhuma palavra ou frase para além das que disse aos meus namorados, as palavras que usei aqui para descrevê-la me soam estranhas, quase desconexas.
Para, então, tentar situar e alcançar a cena daquele domingo, a escritora vai até o Arquivo de sua cidade de origem e busca os jornais da época. Dá-se conta de que, no fundo, tinha a sensação de que encontraria a cena vivida retratada em um deles e que nenhuma das notícias da época chegaria a um nível correspondente. "Somente ela era a cena real.".
Annie afirma que gostaria de ser uma "etnóloga" de si mesma. Manuseando as imagens de sua memória como documentos, iluminando "as linguagens" que a constituíam, as palavras que estavam presentes à época, a escritora tenta dissecar o que se deu naquele domingo, quando foi jogada num lugar próximo à loucura e à morte. Em outras palavras, faz um esforço de costurar passado e presente. Entretanto, esbarra em algo de impossível:
(...) a mulher que sou em 1995 é incapaz de se ver na menina de 1952, que só conhecia sua cidadezinha, sua família e sua escola, que só tinha à disposição um vocabulário reduzido. E, a sua frente, a imensidão do tempo por viver.
Mesmo com todo o trabalho de colocar em palavras, a autora percebe que a cena permanece sem significado, continua sendo base de comparação para outras dores, sem jamais encontrar dor correspondente.
(...) na verdade, nada foi revelado, além do fato bruto. Quero chacoalhar essa cena, há tantos anos congelada, para arrancar de dentro de mim seu caráter sagrado de ícone (demonstrado, por exemplo, na minha crença de que é ela que me leva a escrever, de que é ela que está no fundo dos meus livros).
Em outro trecho, Ernaux afirma que "Não existe memória verdadeira sobre si mesma.". E, ao meu ver, é justamente uma ficção que ela vai construindo ao longo do texto, uma ficção de si mesma, dessa mulher que, quando criança, viveu o indizível. Vai tentando dar conta de como aquele acontecimento a modificou, fazendo-a inclusive pensar que é essa memória que a impele ao seu ofício, que é essa memória o substrato de sua escrita. Talvez seja.
Ainda que a escritora sinta que nada foi revelado, o fato de escrever sobre isso parece produzir efeitos, de algum modo "descongela" a cena, dissolve aquilo que havia ficado apenas como imagem. É justamente o inominável que ficamos tentando nomear, é o irrepresentável que tentaremos representar. Entretanto, restará de fato, à maneira do "umbigo do sonho", algo de insondável, de obscuro, sobre o qual não será possível nada dizer nem interpretar.
A esse respeito, Annie Ernaux diz sobre sua lembrança daquele domingo:
Ela é o lugar de origem sem nome no qual me sinto, quando volto para lá, tomada por um torpor que me esvazia de todos os pensamentos, de quase todas as lembranças precisas, como se ela fosse me engolir novamente.
Diante da memória do horror, Annie escreve. Escreve para não ser engolida.