Alexitimia: quando faltam palavras

Alexitimia é o termo utilizado para se referir a pessoas com grande dificuldade ou incapacidade de expressar e nomear suas emoções. A palavra vem do grego, significa "ausência de palavras para as emoções". Dentro do quadro alexitímico, apresentam-se também traços afetivos pobres, desenvolvimento de relações utilitárias, ausência de empatia, escassa criatividade e imaginação, pensamento operatório, isto é, desconectado de subjetividade, do desejo e da capacidade simbólica.

Numa pesquisa recente, pesquisadores da USP verificaram que, ao contrário do que se afirmou por muito tempo, a alexitimia não tem estado associada a uma doença orgânica. Essa condição tem sido observada em pessoas clinicamente saudáveis. Assim, os autores defendem que ela diz respeito a uma tipificação do que chamam "personalidade do tempo atual", ou seja, é uma condição intimamente ligada a características do nosso tempo, como "competição econômica e social, empobrecimento da linguagem oral e escrita, mentalidade racionalizante e crescente sofrimento cotidiano".

Por vezes me distancio (ou tento me distanciar) do "nosso tempo", num exercício de estranhar o familiar e realmente me espanto. Inteligência artificial, chat GPT, máquinas tomando o lugar de pessoas. A hiperestimulação presente na internet, o bombardeio de notícias que chegam incessantemente, a velocidade em que tudo parece acontecer, nas redes sociais, que funcionam na chave da imagem (sempre furada, enganosa) e da exposição. Nossa capacidade de concentração cada vez mais limitada, a intolerância para textos longos, o pensamento fragmentado, o aumento da velocidade dos vídeos no YouTube ou dos áudios no WhatsApp – aplicativo praticamente onipresente em nossas vidas. Penso em como transformamos os smartphones em apêndices, em como a vida está cada vez mais virtual, menos carne e osso. Mais mecânica, menos humana.

O termo "alexitimia" coloca-se para mim como um tipo de tradução – sempre impossível, falha – desse incômodo que venho sentindo ao perceber como estamos vivendo. Não é assustador que tenhamos produzido uma condição em que não se sabe reconhecer e expressar emoções, sentimentos? Ela me parece verdadeiramente apavorante, na medida em que emoções, sentimentos, afetos e linguagem são a essência do que nos faz humanos, são a substância da nossa humanidade.

Escrevo de uma cadeira confortável, digitando meu texto num notebook, num ambiente climatizado. Publicarei este texto com apenas um clique, tornando-o disponível para pessoas a milhares de quilômetros de distância. Nada disso seria possível sem a tecnologia. Esses são apenas alguns exemplos, poderia citar tantos outros, como os avanços no campo da saúde, que nos possibilitam uma maior expectativa e qualidade de vida. Não estou habilitada a dizer muito sobre as tecnologias em si, sobre "inteligência artificial", mas obviamente reconheço que tiramos muito proveito delas e que elas representam uma melhoria de vida em muitos sentidos.  

Não cabe demonizar a tecnologia, e sim observar sempre com cuidado seus efeitos sobre os mais diversos âmbitos da vida humana, lembrando que ganhos costumam vir acompanhados de custos. Em O mal-estar na cultura, Freud aborda essa ambiguidade dos progressos científicos, dizendo, por exemplo, que se não houvesse as ferrovias, uma mãe não precisaria de um telefone para falar com seu filho, pois ele não teria ido embora. Ele afirma em seguida:

Parece certo que não nos sentimos bem em nossa cultura atual, mas é muito difícil saber se os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e em que medida, e que parte as condições culturais tinham nisso (p. 85, edição L&PM).

Dito isso, reservo-me o direito de confessar que tendo a olhar com certa resistência quando chegam ferramentas como o chat GPT, pois me pergunto sobre seus desdobramentos, sobre o impacto delas em nossa forma de pensar, em nossa habilidade de criar, inventar. O que faremos com nosso pensamento? Vamos deixar de pensar e deixar que as máquinas pensem? Máquinas pensam? Possuem inteligência? O que mais vamos delegar às máquinas?

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Chegará um dia em que computadores – sei-lá-como nomear dispositivos assim – serão capazes de identificar e nomear os sentimentos de um humano? Honestamente, não acredito nisso. Máquinas não sentem. Somos nós humanos os capazes de sentir, vivenciar emoções e dar nome a elas. Trata-se de experiências singulares, intransferíveis, e ao mesmo tempo, compartilháveis justamente pela existência da linguagem.

É assim que fazemos laço com o outro, partilhando experiências, encontrando alguém que sente o que sentimos, que entende o que sentimos. Não à toa, uma das características da alexitimia são as relações utilitárias, um descolamento do afeto. Por consequência, a solidão, o sofrimento. Se por um lado as máquinas vão aprendendo conosco e assim vão se tornando repositórios quase ilimitados de nossas produções, por outro, parece que estamos, progressivamente, nos tornando também máquinas, tristemente desumanizados.

Em um breve texto de 1933, intitulado "Experiência e pobreza" (em Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 2012), Walter Benjamin fala sobre como ficamos mais pobres em experiências comunicáveis:

Uma forma completamente nova de miséria recaiu sobre os homens com esse monstruoso desenvolvimento da técnica (p. 124).

Pobreza de experiência: isso não deve ser compreendido como se os homens aspirassem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza, externa e também interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre, tampouco, são ignorantes ou inexperientes. Frequentemente pode-se afirmar o oposto: eles "devoraram" tudo, a "cultura" e o "ser humano", e ficaram saciados e exaustos. Ninguém mais do que eles sente-se atingido pelas palavras de Scheerbart: ´Vocês estão todos tão cansados - e tudo porque não concentraram todos os seus pensamentos num plano totalmente simples mas absolutamente grandioso.´ (p. 127).

Se há 90 anos, Benjamin via as coisas assim, o que diria ele hoje, quando dispomos de um chat GPT? Estamos mesmo exaustos de tanta informação e pouca experiência, empobrecidos em nossa linguagem e em nossa capacidade de expressão e simbolização. A alexitimia é uma evidência dos efeitos da vida que estamos levando. Pensando no grandioso, em acelerar ainda mais o processamento de informações, em habitar outros planetas, estamos nos esquecendo do simples.

É preciso resgatar as palavras, a potência do simbólico. Brincar com as palavras, tomá-las em seus sentidos originais assim como dar-lhes novos sentidos, transgredir a gramática, a semântica, a sintaxe pra dizer daquilo que sentimos como humanos e que está constantemente desafiando a linguagem. Para isso, creio que é preciso aprender com os melhores, os escritores e poetas; seguir uma prescrição literária. Para isso recorre-se a uma análise, em que se debruça sobre as próprias palavras, os significantes que emergem e que, em outro contexto, poderiam passar despercebidos. As palavras dão contorno e consistência para o que se vive. Não podemos prescindir delas.

Obs.: Fiz aqui uma apresentação bastante breve e sintética do termo "alexitimia" para buscar pensar de que modo ela se coloca como evidência dos efeitos das vida que levamos atualmente. Para um aprofundamento a respeito desse constructo, remeto o leitor ao artigo citado no início do texto:
• Caetano, A. e Rodrigues, A. (2023). Alexitimia e Psicossomática: o Empobrecimento da Linguagem e os Processos do Adoecer. Revista de la Educación Superior (RESU).

Abaixo, seguem indicação de outro artigo a respeito do tema:
• Rodrigues A. L. et al. (2014). Reflexões críticas sobre o constructo de alexitimia. Rev. SBPH, 17 (1), pp. 140-157.