Na primeira parte deste post, propus ampliar o conceito winnicottiano de preocupação materna primária em termos de duração, já que a leitura dos sinais que o bebê emite se estende além das primeiras semanas de vida.

Mas como se manter nesse estado de preocupação materna quando as mães acumulam tantos papéis, cobram-se e são cobradas a desempenhar todos bem? Amigas, filhas, profissionais, esposas, irmãs, mães, etc.
Como se manter disponível e capaz de ler seu filho, em meio a uma pandemia?

A sobrecarga materna já é uma questão antiga, mas a pandemia tornou-a mais evidente e gritante. Isolamento social, escolas fechadas, rede de apoio suspensa, home office, aulas remotas, vida doméstica 24X7, e por aí vai. O absurdo cansaço físico e mental decorrentes do acúmulo de papéis, ou de papéis sendo exercidos todos dentro de casa e de modo virtual, no modo "tudo-ao-mesmo-tempo-agora", parecem provocar uma desconexão que nos torna incapazes de lermos nossos filhos. Quase impossível estar verdadeiramente disponível para essa leitura tão dispendiosa e elaborada quando é preciso estar disponível para todo o restante da vida, o tempo todo.

Não, não tenho a resposta, mas é inevitável lembrar da famosa frase It takes a village to raise a child, ou "É preciso uma aldeia para criar uma criança". Ao contrário do estado de preocupação materna primária, que pressupõe um retraimento do mundo externo, parece-me que é necessário buscar justamente lá aquilo que pode criar as condições para fazer a leitura das necessidades e demandas de um filho, montar sua própria aldeia. E esta não tem fórmula mágica, uma configuração determinada. Cada mãe, cada família vai construindo sua própria aldeia, nas mais diferentes configurações, de modo a se adaptar às mais diversas necessidades e estilos de vida.

A noção de aldeia nos lembra de que fomos feitos para compartilhar espaços, para funcionar de fato em um coletivo e que a criação de um filho não deve ser empreendida de forma solitária. Lembrar-se disso parece-me fundamental para ponderar expectativas e cobranças, ainda mais em meio à pandemia, que trouxe justamente um distanciamento social, inclusive dentro de uma mesma família.

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Exceto quando eles dormem, cuidar de um bebê, de uma criança, pode ser uma atividade que toma quase todo o tempo, de modo que os outros interesses vão como que sendo engolidos por essa função gigante e complexa. Acionar os outros papéis, buscar algo naquilo que está fora, nos outros espaços, nas outras atribuições que não apenas de mãe ou pai, mesmo que apenas brevemente, pode ser um caminho rico e interessante para criar as condições de se conectar novamente ao seu bebê, para poder lê-lo novamente. Aqui, os diferentes papéis colocam-se não como sobrecarga, mas como possibilidade, como lembrete de que somos tantas outras coisas além de pais.

Assim, para que isso a que chamo alfabetização materna continue acontecendo, para que funcione de modo "suficientemente bom" - usando outro termo de Winnicott -, são necessárias pausas. Seja contando com sua aldeia, seja acionando seus outros papéis e nutrindo-se deles, é necessário encontrar brechas no tempo e fazer intervalos nessa leitura tão cansativa que é a leitura de um filho. E, vale dizer, provavelmente só é possível abastecer-se nas outras funções, contando com uma aldeia consolidada, tenha ela que forma for.

Bom, você pode rir desse texto e pensar "Ah! Mas eu sempre soube que o que eu preciso é de tempo!". Mas entrar no turbilhão e no cansaço que pode ser a rotina com bebês e crianças pode deixar a vista turva e levar não somente a uma desconexão dos filhos quanto de si mesmo. Fica então o convite, montemos nossas aldeias; que possamos ser o que mais quisermos, além de pais!