As mulheres e as letras

Estou às voltas com a questão da escrita feminina, da literatura feminina. Há uma literatura dita feminina? Seria melhor utilizar a expressão "literatura de autoria feminina"? Em 2023, qual o lugar das mulheres no universo literário? Essas e outras questões têm se aberto sem que eu tenha respostas bem elaboradas. Há respostas imediatas, que posso dar num impulso, sem pensar muito. Mas dessas eu suspeito, pois estão tomadas pelo meu próprio lugar como mulher bem como pela bolha que acabei criando para mim, impregnada de leituras de escritoras mulheres.

Pensando sobre tudo isso, fui levada à minha infância, a um momento especifico. Eu, na 3ª série da escola, observando que a professora de português sempre que escrevia em minúscula e cursiva a letra “L” – coincidência ou não, a letra do meu nome – fazia uma pequena curva, um pequeno desvio no traçado de um dos lados da letra. Depois de um tempo, lembrei do nome dessa professora, Rita. A professora Rita não me alfabetizou mas de algum modo, com sua pequena curva na minha letra, me marcou. Era um tempo em que, já alfabetizada, me apropriava cada vez mais das letras e das palavras, da escrita e da leitura.

A partir dessa lembrança, fui mais longe no tempo. Lembrei da professora Josélia – cujo nome me veio à cabeça muito facilmente –, que, essa sim, me alfabetizou. E quando escrevo isso, sinto uma profunda emoção por esse ato realizado por ela, e por mim, por consequência. Lembro que ela apresentava famílias de sílabas, ba-be-bi-bo-bu, da-de-di-do-du, la-le-li-lo-lu. Foi com essa mulher, chamada Josélia, que aprendi as letras, seus fonemas, suas grafias. É com as letras que ela me ensinou que escrevo agora, é com elas que leio textos todos os dias.

Tenho flashes da minha sala do Jardim III, dos meus colegas de alfabetização. Penso naqueles meninos e meninas e me pergunto se algum deles terá se encaminhado mais diretamente pelas letras, se alguma daquelas meninas se tornou escritora.

Desse breve passeio pela minha história com as letras, fui a uma incursão pela história da participação das mulheres na Academia Brasileira de Letras. Trata-se de um pequeno recorte para pensar o espaço das mulheres nas letras, mas que considero bastante simbólico.

As mulheres na Academia Brasileira de Letras

A ABL foi fundada em 1897, no Rio de Janeiro, por um grupo de escritores – dentre eles, Machado de Assis, Olavo Bilac – com o objetivo de cultivar a língua portuguesa e a literatura brasileira. É constituída por quarenta membros efetivos e vitalícios, daí serem chamados de "imortais", e vinte sócios correspondentes estrangeiros. A Academia teve importante participação no Acordo Ortográfico de 1945 e no de 1990. Em 1909, iniciou a concessão de Prêmios Literários, com a finalidade de incentivar diferentes manifestações culturais.

Até o ano de 1976, foi composta estritamente por homens. Foram necessárias oito décadas de funcionamento para que uma mulher, a escritora Rachel de Queiroz, viesse a assumir uma cadeira na ABL. Desde o início da Academia, não havia em seu Estatuto nem em seu Regimento Interno qualquer restrição ao ingresso de mulheres, uma vez que os textos determinavam que “só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário. As mesmas condições, menos a de nacionalidade, exigem-se para os membros correspondentes”.

Entretanto, em 1930, quando a escritora Amélia Beviláqua fez sua proposta de candidatura, os membros se agitaram e a vetaram, justificando que o termo "brasileiros" fazia referência somente a pessoas do sexo masculino. (Diante dessa manobra ridícula e misógina, uma pausa para respirar fundo e revirar os olhos).

Em 1951, vinte um anos depois do episódio, foi feita uma "discreta" alteração no Regimento Interno, que colocava que os membros efetivos seriam eleitos dentre os brasileiros, "do sexo masculino". Em 1970, a discussão sobre o ingresso de mulheres retorna com a proposta de candidatura de Dinah Silveira de Queiroz, que já havia inclusive recebido o Prêmio Machado de Assis, oferecido pela própria Academia, em 1954. Sua candidatura foi também negada, com base na já referida alteração do Regimento. A resposta do então presidente da ABL, Athayde, foi:

Considerando que, como é notório, a ilustre escritora Dinah Silveira de Queiroz honrou a Academia com uma carta em que pede a sua inscrição como candidata. Assim procedeu na suposição de que o Regimento da Academia ainda era o mesmo que vigorava por ocasião de sua fundação, nos tempos de Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Sílvio Romero, José Veríssimo, Carlos Laet, Rui Barbosa e de tantos outros.

Em outras palavras, Athayde atribuiu a proposta de Dinah a um desconhecimento dela a respeito da alteração que havia sido feita em 1930. Como se antes da alteração alguma mulher já houvesse sido eleita... Nas palavras de Athayde, Dinah era uma "ilustre escritora", "honrou" a ABL com sua proposta, mas não era ilustre a ponto de ter sua candidatura aceita, nem era honra suficiente para a agremiação tê-la em sua composição.

Júlia Lopes de Almeida (imagem: https://pt.globalvoices.org/2018/09/13/a-escritora-best-seller-do-seculo-xix-que-foi-excluida-da-academia-brasileira-de-letras/)

Avançando na pesquisa sobre a participação de mulheres na ABL, fui levada novamente à sua fundação, quando descubro que havia, no grupo de intelectuais que a idealizou, uma única mulher, a escritora Júlia Lopes de Almeida. Numa primeira pesquisa que se faça sobre a Academia, o nome de Júlia não aparece, o que é emblemático. É preciso juntar os termos "ABL" e "mulheres" para que seu nome surja.

À época, o escritor Lúcio de Mendonça teria achado justo oferecer a Júlia uma cadeira, mas seus colegas discordaram argumentando que não havia mulheres na Academia Francesa de Letras, que havia sido inspiração para a brasileira. Para dar o toque final, quem assumiu a cadeira que seria dela foi seu marido Filinto de Almeida (!!!).

Retomando a efetiva ocupação das cadeiras por mulheres, após Rachel de Queiroz, em 1980 Dinah Silveira de Queiroz foi finalmente eleita para compor a ABL. Depois dela, Lygia Fagundes Telles (1985), Nélida Piñon (1989) – primeira mulher, em 100 anos, a presidir a Academia –, Zelia Gattai (2001), Ana Maria Machado (2003), Cleonice Berardinelli (2009) e Rosiska Darcy de Oliveira (2013).

A última mulher a tomar posse como imortal foi a atriz Fernanda Montenegro, em 2022. Em 20 de abril deste ano, Heloísa Buarque de Holanda foi eleita para assumir a cadeira 30, ocupada anteriormente por Nélida Piñon, falecida em dezembro do ano passado.  Heloísa tomará posse no próximo dia 28 de julho. Para que se tenha uma dimensão numérica, ela será a 10ª mulher a ocupar uma cadeira na ABL,  de mais de 260 escritores que já ocuparam as 40 cadeiras da Academia, em seus 126 anos de existência.

Visitar a história da Academia evidencia a dificuldade que as mulheres encontraram de ocupar lugares centrais, lugares de protagonismo, de terem não apenas sua produção literária reconhecida como também de ocupar um espaço de prestígio e de poder. É sempre importante ressaltar como a leitura e a escrita são potentes ferramentas de emancipação. Assim, tentar apagar e manter afastadas as mulheres desse universo não é um fato dado ao acaso. Pelo contrário, contém uma intenção clara de manter as mulheres relegadas a certos espaços e funções, determinados, obviamente, por homens.

Registrar o nome dessas mulheres aqui é, então, uma forma singela, mas acredito que importante, de homenageá-las, honrá-las e evitar que sejam apagadas da história como tantas vezes se tentou fazer. Nomear essas mulheres que, cada uma a sua maneira, fazem parte do meu percurso com as letras, com a leitura e a escrita, é um modo de agradecê-las.

Por Josélia, Rita, por todas as mulheres que compõem a Educação Básica – área composta predominantemente por mulheres e que é tão desvalorizada –, mulheres responsáveis pela alfabetização de crianças e adultos. Por Júlia, Dinah, Nísia, Maria Firmina, Carolina, Ana Maria, que, com insistência incansável, ímpeto transgressor, talento literário, abriram caminho para tantas outras. Mulheres que me precedem e que permitiram que hoje eu esteja escrevendo aqui.

Obs.: Em tempo, acabo de ver que a escritora Marina Colasanti foi anunciada como vencedora do Prêmio Machado de Assis de 2023. Viva!! Informo também que na próxima semana será lançado o primeiro livro da coleção infantil "Mulheres insubmissas", coordenada por Patrícia Valim e Valeska Zanello, que trará a história de personalidades importantes, predominantemente de brasileiras. A coleção tem por objetivo tirar da invisibilidade mulheres que permaneceram ocultas ou apagadas da cultura.

Obs.2: As informações sobre a ABL foram retiradas de diversos sites que figuram logo na primeira página de busca do Google, com as palavras "Academia Brasileira de Letras" e "ABL mulheres". Os dados mais detalhados de participação das mulheres na respectiva agremiação foram retirados do artigo "As mulheres e a Academia Brasileira de Letras" e as informações mais atualizadas de sites de notícia.

Remeto o leitor também à apresentação "A luta das mulheres na Academia Brasileira de Letras", que contém um breve resumo da participação das mulheres, com ótimas fotos.