Ontem recebi de uma amiga o discurso da atriz e roteirista Michaela Coel (também cantora, compositora, poeta e dramaturga) na cerimônia do Emmy Awards, que ocorreu no último domingo. Não acompanhei a premiação mas tinha visto muitos comentários elogiando o discurso dela ao receber o prêmio de melhor roteiro em minissérie ou filme para a TV, que, por sinal, ela dedicou aos sobreviventes de abuso sexual. Há sem dúvida muitos motivos para todos os comentários e elogios, como o fato de ela ser a primeira mulher negra a receber tal prêmio e, com certeza a série em si, I may destroy you, baseada em uma experiência real de abuso sexual.
Como não vi a série de Michaela, - da qual também ouvi falar muitíssimo bem - não posso comentar a respeito. Proponho-me, aqui, apenas a fazer um breve comentário sobre o texto de seu discurso, sobre o que ele me fez refletir e para onde meu levou. Disse à minha amiga que é daquelas coisas que a gente tem que reler várias vezes, tentando absorver a potência das palavras. Fiquei pensando muito sobre elas e sobre a razão de serem tão impactantes para tantas pessoas.
Escrevi uma coisinha para escritores. Escreva a história que te assusta, que te faz se sentir inseguro, que não é confortável. Eu te desafio. Em um mundo que nos seduz a navegar pela vida de outras pessoas para nos ajudar a determinar melhor como nos sentimos sobre nós mesmos e, por sua vez, sentir a necessidade de estarmos constantemente visíveis - pois a visibilidade hoje em dia parece de alguma forma equivaler ao sucesso - não tenha medo de desaparecer dela, de nós, por um tempo e ver o que vem para você no silêncio. (...) Eu dedico esta história a cada sobrevivente de abuso sexual (Michaela Coel).
Uma das primeiras coisas que me chama à atenção é que a atriz desafia o escritor a escrever justamente aquela história que o deixa desconfortável, ou seja, trata-se de um convite a se autorizar. Esta é a uma ideia muito cara à psicanálise, o exercício de autoria. Assim, ainda que Michaela se dirija especificamente aos escritores, penso que pode, em alguma medida, se aplicar a todos, naquilo que cada um se sente impelido a fazer, a criar.
A segunda parte, em que a roteirista fala de como a visibilidade tem sido tomada como correspondente de sucesso, bem como o quanto andamos nos baseando na vida de outras pessoas para avaliar como nos sentimos em relação a nós mesmos, não poderia ser mais atual. Vivemos um tempo em que somos pressionados a nos expor cada vez mais, a nos mostrar, a nos exibir, com a adição desse elemento comparativo com a vida do outro, em que a grama do vizinho parece sempre mais verde que a nossa.
O ponto em que, a meu ver, Michaela nos fisga é quando nos convoca a desaparecer, a nos tornarmos invisíveis. Um convite das redes sociais às avessas, na contramão. Desapareça, experimente ficar invisível, experimente o silêncio. Em meu último post, abordei, entre outras coisas, o silêncio, falando de algo que talvez só possa acontecer nesse estado de retiro. O discurso da atriz me faz pensar exatamente nisso, numa espécie de aposta de que algo aconteça justamente na invisibilidade, na ausência do barulho e do olhar do outro.
Com isso, não proponho que nos tornemos invisíveis todo o tempo, ignorando nosso desejo do oposto, mas que possamos fazer este trânsito, de um ponto ao outro e deste ao anterior. Que possamos sumir no silêncio para, então, aparecer novamente, visíveis, com algo autoral, genuíno, e não feito, manufaturado somente para ser validado e visto pelo outro.