Há cerca de três anos, por ocasião do centenário de Clarice Lispector, escrevi sobre o meu encontro com ela, ocorrido há uns 16 anos. Eu a encontrei, mais precisamente, em duas páginas de Água viva. Numa aula de psicanálise, duas páginas xerocadas me arrebataram, me levaram para algum lugar dentro de mim que eu não sabia que existia. Duas páginas que inauguraram uma relação duradoura com essa mulher de olhar enigmático, hipnotizante.
Depois desse encontro, em Clarice encontrei muitas e muitas vezes salvação, uma mão à qual me agarrar. lá atrás, se alguém me perguntasse o porquê, eu realmente não saberia dizer. Hoje, 16 anos depois, talvez eu esteja tateando para descobrir o que há nessa escrita. E talvez a coisa mais bonita desse processo de tatear, de investigar, seja encontrar outras mulheres, ir dando as mãos a outras mulheres.
Dentre essas mulheres, está Hélène Cixous, cujo ensaio-manifesto, intitulado O riso da Medusa, me causou profundo impacto (comento sobre ele aqui). Agora, mergulho em A Hora da Clarice Lispector, que Cixous inicia contando justamente de seu encontro com a escritora, em 12 de outubro 1978 (hoje, 13 de outubro. A proximidade da data não pode deixar de espantar). Transcrevo abaixo uma passagem que dá a dimensão do efeito de Lispector sobre Cixous:
Uma escrita, com as mãos cintilantes na escuridão, quando eu não ousava mais me ajudar, minha escrita tão distante na solidão pura, tão perto do riacho ressecado de Querite, nem chuva, nem orvalho, veio incessantemente me pedir perdão, eu a perdoava, eu pedia perdão, nem alimento, nem corvos. Eu não falava mais, eu temia minha voz, eu temia a voz dos pássaros, e todos os chamados que olham de fora, e não há fora, mas apenas o nada, e se apaga – uma escrita me encontrou quando eu não conseguia me encontrar (p. 10).
Cixous traz a imagem de uma laranja para falar desse encontro com Clarice, assim como de escrita feminina. Uma laranja que é fruta mas que também a ultrapassa, me fazendo pensar naquilo que Clarice toca com sua escrita, o it, a coisa mesma. Como ela afirma na entrevista com Marina Colasanti, Affonso Romano de Sant`Anna e João Salgueiro, "Eu não escrevo como catarse, para desabafar. Para isso servem os amigos. Eu quero a coisa em si".
A laranja parece ter profunda relação com a escrita em si, entretanto, não se reduz a ela. É uma esfera que condensa "os sinais da vida em seus ínfimos começos", "o nascimento da vida com os cuidados mais delicados" – expressões que Cixous apresenta logo na primeira parte de seu texto, intitulada "Viver a laranja". Em A descoberta do mundo, de Clarice, encontramos o breve pensamento abaixo, que talvez nos dê pistas de tudo o que a laranja representa:
AMOR À TERRA
Laranja na mesa. Bendita árvore que te pariu.
Terra, árvore, fruta, sinais da vida, nascimento da vida... A laranja é feminina. A laranja é uma imensidão. Cixous conta que, antes de seu encontro com Clarice, estava justamente distante da laranja, separada da laranja:
(...) minha mão não tinha mais o bom conhecer, a bondade da laranja, a plenitude da fruta, minha escrita, estava separada da laranja, não escrevia a laranja, não ia até ela, não a chamava, não levava seu suco aos meus lábios (pp. 11-12).
É a escrita de Clarice que promove um (re)encontro de Hélène com sua própria escrita, com a laranja:
Ela recolocou a laranja nas mãos desertadas de minha escrita, e com seu sotaque alaranjado esfregou os olhos da minha escrita, que estavam áridos e cobertos com uma mancha branca de papel. E foi como uma infância que voltava correndo para pegar a laranja viva e imediatamente celebrá-la. Porque nossas infâncias têm a ciência natural da laranja (p. 12).
Às mulheres, Hélène dedica a existência da laranja, que lhe foi dada por uma mulher. "E a todas as mulheres para as quais a necessidade de refletir o fruto é uma missão de vida, eu dedico os suculentos frutos da meditação. Assim, a todas as mulheres então (p. 14)".
Transcrevo essas passagens, ainda do início de seu livro, para também dar mostras de que Cixous realiza, ela própria, uma escrita poética, um poema em prosa, ou seja, que sua escrita está no mesmo terreno da de Clarice. Ambas borram as fronteiras entre gêneros, não se deixam limitar por apenas um. Afinal, poderia a escrita feminina, em toda sua potência, caber nos limites de um gênero fechado?
É então que retorno ao meu encontro com Clarice, agora auxiliada pelo que Hélène elaborou sobre o seu próprio encontro com a escritora. Ainda não posso colocar em palavras exatas, organizadas, coesas, o que a escrita clariceana promove em mim. Como disse, ainda estou tateando, mas posso dizer que há algo de laranja, algo de tocar a laranja, de segurá-la nas mãos. Afinal, escrever sobre escrita feminina, escrever sobre a escrita de Clarice, é escrever sobre o impossível. É preciso coragem para fazer o mergulho.