A "escrita automática" é um método de escrita criado por André Breton - escritor francês, poeta e líder do Movimento Surrealista -, que consiste em uma produção escrita que busca suprimir pensamentos conscientes de quem escreve, uma forma de deixar o pensamento inconsciente fluir. Breton cria esse método de escrita imbuído de seus estudos em psicanálise, toma como partida a "associação livre", criada por Freud e conhecida como a regra fundamental da análise. De forma sucinta, a associação livre consiste em falar aquilo que vier à cabeça, sem qualquer tipo de julgamento ou crítica.

Lembro de, anos atrás, fazer um exercício de "escrita automática" proposto por uma professora; eu, já em análise, não tive dificuldade em me jogar pela folha de papel, solta. Mas alguns colegas se viram um pouco travados para se engajar na tarefa, como alguns pacientes podem se sentir também diante do convite a falar livremente. Afinal, em nosso cotidiano estamos bastante distantes de dizer tudo que vem à nossa cabeça e provavelmente também distantes de ter ouvintes tão interessados e atentos ao que falamos.

Nos meus exercícios de escrita, tomada pela psicanálise como sou, tendia a me impor a cadência de uma escrita automática, quase como se pudesse usar apenas a palavra que me veio primeiro à mente. Dito de outra forma, parece que fui transpondo a regra fundamental da análise para a minha escrita. Aos poucos fui vendo que não era bem disso que se tratava. À vezes é preciso burilar as palavras, reordená-las, encontrar sinônimos, palavras cujos significados se aproximem mas que guardam suas peculiaridades, sutilezas semânticas capazes de modificar o sentido das ideias.

Meu pensamento é mais rápido que minhas mãos e, assim, talvez a fala, como na análise, ainda seja mais próxima da velocidade do pensamento, mesmo que nunca de fato a alcance. Nesse sentido, pode haver um intervalo maior entre o que penso e escrevo do que entre o que penso e falo, o que talvez dê mais espaço para que a crítica, a censura, ajam. É que aí, não estamos numa sessão de análise. Ainda assim, sinto que nos aproximamos desse campo, uma vez que estamos escolhendo palavras e nossas escolhas dizem sempre algo de nós.

Inevitável lembrar do texto Escova de Manoel de Barros:

Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam ali sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto, trancado, a escovar palavras. Logo a turma perguntou: o que eu fazia o dia inteiro trancado naquele quarto? Eu respondi a eles, meio entressonhado, que eu estava escovando palavras. Eles acharam que eu não batia bem. Então eu joguei a escova fora (In: Memórias inventadas).

Seja na escrita, seja em análise, sinto que em alguma medida estamos sempre escovando palavras, burilando-as. Espero nunca jogar minha escova fora.