Em sua última coluna, Julián Fuks fala Sobre o fascínio provocado pela sinceridade, na arte e na vida. O escritor fala de sinceridade, mas não uma sinceridade bruta, grosseira, e sim aquela "daqueles que se atiram em suas próprias profundezas e retornam lúcidos, serenos, ávidos por dizer.".

Fuks conta que Tolstói defendia a sinceridade como o maior atributo do artista, que deve ter em si uma necessidade de expressar seus sentimentos. Ele fala então dos escritores que só podem escrever sobre aquilo que experimentaram, viveram, ou seja, aqueles que só podem produzir uma escrita autobiográfica. "Há quem acuse nisso uma perda, uma redução da literatura à condição de testemunho, seu estreitamento aos limites do biográfico.", o escritor afirma.

De minha parte, tenho intenso interesse justamente por essa escrita, essa que vai dentro de si, que fala de uma experiência singular. Penso que quem se atira em sua mais íntima profundeza, encontra um universo, que, muito ao contrário de reduzido, é tão vasto e rico que, como diz Fuks, emerge desejoso de dizer o que lá encontrou.

Foi, então, que me lembrei de uma leitura recente, a do livro Ioga, do escritor francês Emmanuel Carrère, que ele pretendia que fosse um "livro perspicaz e simpático sobre a ioga" e que termina sendo uma mistura de um ensaio sobre ioga e – talvez principalmente – um relato autobiográfico. Sua narrativa começa em um retiro de meditação que deve durar 10 dias, mas que torna-se um relato sobre muitas outras coisas que viveu diretamente e outras pelas quais foi indiretamente afetado, como um ataque terrorista, a crise dos refugiados e o período que passou internado no Hospital Sainte-Anne.

Em uma passagem, Carrère afirma justamente seu interesse pela escrita autobiográfica:

*Os escritores que escrevem aquilo que passa pela sua cabeça são os meus preferidos, sendo Montaigne nosso santo padroeiro, ele que faz exatamente isso, escreve o que passa pela sua cabeça na mais pura indiferença à opinião das pessoas que dizem não estar nem aí para o que passa pela sua cabeça e que é preciso ser muito pretensioso, muito egocêntrico, para registrar isso, pois Montaigne pensa que nada é tão interessante quanto isso, e ainda mais interessante por ele ser um homem comum, não alguém cujas memórias se leem por suas grandes ações, mas alguém que não tem nenhuma outra particularidade além de ser um homem e, apenas por isso, sem se recobrir de exceções, poder testemunhar o que é ser um homem (p. 69, versão digital).

É isso que Emmanuel faz em seu livro, uma escrita brutalmente honesta – sincera, para usar o termo de Fuks – sobre aquilo que se passa dentro de sua cabeça, tanto nos momentos da mais profunda paz meditativa como naqueles do mais terrível desalento.

Sou um homem narcisista, instável, saturado pela obsessão de ser um grande escritor. Mas é a minha cota, é a minha bagagem, é preciso trabalhar com o que se tem, e é na pele desse homem que devo fazer a travessia (p. 118, versão Kindle).

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Emmanuel, partidário dessa escrita sincera, honesta, acabou por me fisgar e representou uma quebra de uma longa sequência de leituras quase estritamente de escritoras femininas. Todas elas falando, cada uma a seu modo, sobre ser uma mulher, seja por meio de um ensaio seja por meio de uma escrita mais claramente autobiográfica. Fui sendo arrebatada quase sem perceber e sem também que eu desse conta de elaborar aqui um texto coeso.

A coluna de Julián Fuks me tocou também nesse ponto, quando cita Lispector e Ernaux como exemplos de uma escrita sem pudor, reveladora de experiências, afetos e sentimentos singulares, íntimos e, a meu ver, tantas vezes (maravilhosamente) crus. A respeito de Ernaux, por exemplo, ele diz:

Sua aptidão para a sinceridade parece derivar de sua completa independência: ela não deve palavras a ninguém, a não ser a si mesma (Fuks).

O escritor lançou, então, uma espécie de clarão no meio de todas essas leituras que venho fazendo, das anotações esparsas e grifos espalhados por páginas e páginas. Talvez haja este ponto em comum na escrita dessas mulheres, a sinceridade e toda a potência que ela carrega, mas, sobretudo, como ele diz, o "levar uma vida sincera". Como seria possível fazer uma escrita sincera sem levar uma vida do mesmo modo? E como seria possível levar essa vida autêntica sem que houvesse independência para tanto? Indo um pouco mais longe, como desfrutar de independência sem que haja liberdade?

Deborah Levy, citando Simone de Beauvoir, os diários de Susan Sontag e Louise May Alcott, afirma: "Sempre me interessei por diários. Neles parece estar em ação uma escritora feita de sombra. Em busca de seus pensamentos mais verdadeiros, ela se vê estendida como uma sombra sobre a página, mais alta que seu eu físico (p, 105, em Bens imobiliários).". Para se autorizarem a uma escrita sincera, para poderem olhar para essa sombra, essas mulheres tiveram que construir formas de se desprender daquilo que era esperado delas, abandonar o papel de Anjo da Casa – expressão proposta por Virginia Woolf.

O espaço, o silêncio, a liberdade necessários para a escrita feminina, não foram/são encontrados, achados; foram e continuam sendo laboriosamente fabricados por elas. E, se Montaigne pensava que o que passava pela cabeça de um homem comum era digno do maior interesse (e não nego que haja mesmo algo de muito interessante aí), o que dizer do que se passa pela cabeça de uma "mulher comum"? O que dizer dos testemunhos do que é ser uma mulher, daqueles que já foram escritos e de todos que ainda estão por vir? A sinceridade das mulheres, de sua escrita, pode ser amedrontadora para muitos, pois tem sido/é capaz de transformar a realidade de um modo que o homem comum não poderia sequer imaginar. E muito ainda virá.