Finitude e as dores de que padece o corpo
A pandemia trouxe a convivência com um vírus que provoca uma doença dolorosa, que tem deixado sequelas em muitos, assim como tem levado ao aparecimento de uma série de dores e males que surgem como efeito desses tempos duros de isolamento e tensão constante. Nesse contexto, a dor tem ficado em evidência, fazendo-me pensar sobre quais podem ser as consequências de viver com a dor.
Em seu importante texto sobre o narcisismo, de 1914, um dos aspectos que Freud aborda é como a libido - entendida de maneira sucinta como a energia que é investida no próprio eu ou em objetos no mundo externo - é distribuída na presença de uma enfermidade, mais especificamente na presença de dor física. Ele cita:
"No buraco de seu molar", diz Wilhelm Busch do poeta que sofre de dor de dente, "se concentra a sua alma.". Libido e interesse do Eu têm aí o mesmo destino e são de novo inseparáveis. (p. 26, Introdução ao Narcisismo, edição da Cia das Letras).
Esse trecho sempre me marcou, pois penso que é uma experiência quase universal. Quem já vivenciou uma dor física experimenta de fato uma espécie de recolhimento do mundo externo, que às vezes aparece inclusive num encolhimento físico do corpo. Fica-se completamente voltado para a própria dor, sendo quase impossível investir, pouco que seja, em algo além dela.
Fiquei pensando sobre como as dores de que padece o corpo vêm como lembrete de que temos um corpo, habitamos um corpo. Lembro de um meme bobo que traz uma verdade sobre isso, ele diz: eu com o nariz entupido lembrando dos momentos felizes que vivi com o nariz desentupido. Quando o corpo funciona bem é como se ele ficasse "invisível", quase imperceptível, como se estar bem fosse um pouco esquecer que temos um conjunto complexo de órgãos trabalhando 24 horas por dia. Basta que algo desse funcionamento falhe para nos lembrarmos de que temos cabeça, estômago, dentes, ouvidos...
É então que nos deparamos com o que Freud, no Mal-estar na cultura, estabelece como uma fonte de sofrimento humano, nossa finitude. A dor nos lembra de que nosso corpo é falível, se deteriora, envelhece e, em algum momento, parará de funcionar. Em outras palavras, a dor pode nos colocar diante da morte, do medo da morte, do medo de sofrer, de sentir em centímetros da pele, em células de órgãos de que quase nunca lembramos, que o corpo é frágil, vulnerável.
Nosso corpo não está sob nosso controle. Ainda que a ciência e a tecnologia nos permitam cada vez mais controlá-lo, modificá-lo, consertá-lo, há coisas que nos escapam. Quando atingido por uma dor intensa, o corpo - com seus limites, fronteiras e bordas -, transborda, vem como excesso, nada o contém. O corpo sinaliza que pode se sobrepor às nossas vontades e desejos, suspender interesses externos e, como afirma Freud:
Uma observação mais precisa mostra que ele [alguém que sofre de dor orgânica] também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos, que cessa de amar enquanto sofre (p. 26).
Trata-se de um sujeito ensimesmado, em sofrimento, voltado para si mesmo porque de outro jeito não é capaz de fazer. Desse modo, viver com a dor durante um período tão prolongado pode realmente minar as relações sociais, assim como a capacidade criativa e produtiva do sujeito. Parece-me que é preciso não apenas tratar fisicamente da dor, mas também dar lugar, na fala e na escuta, às dores que assolam o corpo; acolher isso que tantas vezes parece inominável e intrusivo, algo que acontece à revelia do sujeito.