Guerra, narrativas e verdade


Comecei a escrever este texto há mais de 20 dias, sem conseguir terminá-lo. No tempo que transcorreu até aqui, sigo pensando sobre ele, tentando compreender minimamente as questões que ele traz. Talvez eu tenha falhado. Assim, a seguir, não me proponho a trazer respostas claras nem fechadas. O que escrevo abaixo talvez traga mais perguntas do que respostas. Acredito que talvez sejam pistas, apontamentos de um caminho para continuar pensando essa questão tão complexa e que há tempos me intriga.

Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, o noticiário e as redes estão repletos de imagens como civis ucranianos armados e desarmados tentando barrar tanques, prédios residenciais sendo bombardeados, soldados russos exibindo suas armas, ucranianos e imigrantes atravessando a fronteira com a Polônia, manifestações contra a guerra em Moscou, Berlim, Nova Iorque, etc. Considerando que esta é a guerra recente de maior impacto global, devido ao peso e influência dos envolvidos, talvez nunca uma guerra tenha sido  tão « assistida » no mundo todo. Estamos acompanhando a guerra naquilo que chamamos "tempo real". Desse modo, essa guerra deixa de acontecer somente no campo de batalha e se estende para as redes sociais, para a internet como um todo.  

O presidente ucraniano, por exemplo, tem feito uso constante das redes As informações publicadas por ele em seu Twitter têm sido largamente compartilhadas e sido fonte de notícias para muitos veículos midiáticos. Ele claramente tira vantagem disso ao fazer diversos vídeos sobre o que acontece na Ucrânia. Aproxima-se não só de seu povo quanto também daqueles que assistem de maneira remota. Fala-se inclusive que a partir da internet, pessoas têm se "alistado" para defender virtualmente a Ucrânia.

Do outro lado, ainda que o presidente russo não faça uso das redes do mesmo modo que Zelensky -  que se endereça ele próprio aos ouvintes e espectadores - , há uma máquina de propaganda pesada em funcionamento, defendendo outro ângulo da história. O governo russo tem buscado, cada dia mais, impedir que as notícias e imagens cheguem ao país por meio da internet, bloqueando ou banindo redes sociais, por exemplo. A partir da TV estatal russa, o governo controla rigorosamente o que se diz sobre a situação na Ucrânia, afirmando, por exemplo, que se trata de uma "operação militar especial" e não de uma guerra. Entretanto, em tempos de internet, é quase impossível controlar totalmente o acesso a informações. Assim, há muitos cidadãos russos que têm se manifestado contra tal "operação" e, por consequência, milhares deles já foram detidos em diversas cidades do país.

Desse modo, trata-se de uma guerra militar, mas também do que hoje tem se chamado « guerra de narrativas ». Sabemos que os dois lados da guerra fazem uso de narrativas que servem aos respectivos interesses. Logo que a Rússia invadiu a Ucrânia, uma das advertências feitas nas redes foi justamente que se tivesse o cuidado de checar fontes e fatos antes de propagar informações que, especialmente numa guerra, podem ter forte impacto e consequências devastadoras.

Muitas histórias curiosas têm vindo à tona nesse cenário. O correspondente Sergio Utsch, por exemplo, relata a história de uma mãe e uma filha, vindas de Odessa, na Ucrânia, que encontraram abrigo na casa de uma amiga da filha, em Chisinau, na Moldávia. Nessa casa, ao mostrarem as fotos da guerra, receberam o pedido de que apagassem essas fotos, pois, segundo a família da amiga, não são imagens verdadeiras, são fake news.

Há também o relato de Oleksandra, uma jovem de 25 anos que vive na Ucrânia e cuja mãe mora em Moscou. Mesmo vendo vídeos da cidade onde a filha mora sendo bombardeada, sua mãe não acredita que ela corre perigo. Segundo Oleksandra, ela apenas repete o que assiste na TV estatal russa, dizendo que os russos libertarão a Ucrânia e que seu alvo são apenas as bases militares.

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Essas são apenas algumas amostras desse fenômeno que estamos acompanhando nos últimos anos e dão a dimensão de sua complexidade. O que é possível pensar sobre elas?

Particularmente, quando ouço a palavra "narrativa" - dita e escrita repetidamente nesse momento - penso logo sobre o quanto ela é cara à psicanálise. Uma das maiores contribuições realizadas por Freud foi que ele se deu conta, ao longo de sua prática, de que era justamente a narrativa do paciente a respeito de sua doença que guardava a chave para sua cura. Em uma carta a Fliess, de 1897, Freud faz a famosa afirmação "Não acredito mais em minha neurótica", mostrando que:

(...) no inconsciente, não há indicações da realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é catexizada [investida] com afeto (p. 310, Edição Standard).

Desse modo, o conceito de verdade ganha outra perspectiva para a psicanálise, estando atrelado a uma ficção, no campo do inconsciente. Em psicanálise, levamos em consideração especialmente a realidade psíquica e não a material. É a primeira que nos interessa realmente, pois permitirá acessar algo de verdadeiro do sujeito. (Como já disse aqui, considero esse tema extremamente fascinante, assim, pretendo tratá-lo em outros textos para lhe dar a atenção devida).

Já as notícias falsas são, grande parte das vezes, fabricadas com motivações e intenções claras, de modo a, justamente, fabricar uma realidade específica que responda aos interesses de quem as cria. Talvez pudéssemos dizer que são criadas de maneira proposital, falseadas deliberadamente, de má-fé. Mas essa me parece somente uma camada do fenômeno.

Esses dias vi uma charge em que uma pessoa avisa a outra que determinada notícia é falsa, ao que a outra pessoa responde "Não importa, ela é conveniente pra mim", agarrada concretamente às palavras "fake news". Obviamente, pode-se compartilhar notícias falsas por uma ignorância, porque vão ao encontro daquilo em que acreditamos, porque confirmam o que pensamos. E aqui, teríamos em jogo a realidade psíquica de cada um. Mas o que pensar do fato de uma mãe que recebe vídeos de bombardeios à cidade onde está a filha e ainda assim não acredita, nega a realidade?

Impossível não lembrar do texto de Freud "A negação", um texto de 1925 bastante curto e realmente fundamental na obra freudiana. Nele, Freud traz um célebre exemplo do paciente que relata um sonho e logo diz algo como "Não sei quem é a pessoa no sonho, mas não é minha mãe". O psicanalista afirma que o "não" colocado à frente é marca do recalque, é a negação que permite que o conteúdo recalcado, "censurado", de uma ideia ou imagem venha à consciência.

O que está em jogo é a função intelectual do juízo, que deve confirmar ou negar conteúdos, tomando duas decisões a esse respeito: se algo é bom ou mau, útil ou prejudicial e se, portanto, deve ser ou não acolhido pelo Eu; e se aquilo que se acha representado no Eu pode ser reencontrado na realidade. O que é bom deve estar dentro e "o que é mau e o que é forasteiro, que se acha de fora, são idênticos inicialmente (p. 278, edição Cia das Letras).

O livro  Ética e pós-verdade, uma reunião de textos de diversos autores, também pode nos ajudar a lançar luz sobre esse fenômeno. Em sua participação, com o capítulo intitulado "É preciso parar de argumentar", Vladimir Safatle mostra, a partir de uma citação do filosófo brasileiro Bento Prado, que o tempo que vivemos é de fato mais complexo, não permitindo avaliar as coisas somente em verdadeiro ou falso; que "O campo da persuasão é antes o da guerra que o do entendimento comunicacional",

A base de um jogo de linguagem não é constituída por proposições suscetíveis de verdade e de falsidade, mas corresponde apenas a algo como uma escolha sem qualquer fundamento racional (p. 91, edição Kindle).

Do que se trataria a guerra de narrativas senão de uma tentativa de persuasão? De um lado buscando convencer o outro de que tem a razão? Safatle, complementando o que diz Bento Prado, afirma que o que baseia a decisão por um ou outro argumento, nosso assentimento a uma ou outra ideia, é algo do campo do afeto, isto é, trata-se de uma decisão "afetada por um pathos".

O que nos persuade não é exatamente a verdade de uma proposição, mas a correção de uma forma de vida que ganha corpo quando ajo a partir de certos critérios e admito o valor de certos modos de conduta e julgamento. Nesse sentido, o critério do que me persuade está ligado a um julgamento valorativo a respeito de formas de vida que têm peso normativo (p. 92, edição Kindle).

Nesse mesmo sentido, Dunker, ao falar sobre pós-verdade, diz que a principal característica dessa "(...) é que ela requer uma recusa do outro ou ao menos uma cultura da indiferença que, quando se vê ameaçada, reage com ódio ou violência. É cada vez mais difícil escutar o outro, assumir a sua perspectiva, refletir, reposicionar-se e fazer convergir diferenças (p. 17, edição Kindle)". Assim como Safatle, ele nos dá indicações de uma impossibilidade de fazer algo da diferença, o que acaba por levar à violência e à destruição.

Guerra de narrativas, notícias falsas, pós-verdade, negacionismo... Suspeito que o fato de estarmos ainda tão próximos desses fenômenos torne difícil explicá-los ou nomeá-los mais claramente. Eles tumultuam ideias, opiniões e colocam em questão inclusive conceitos cunhados há tantos anos. Cada tempo traz suas peculiaridades, suas transformações (ainda que, por vezes - como na própria guerra - , nos vejamos também tão parecidos com o que fomos 80 anos atrás). Parece-me que talvez seja preciso mais distanciamento para, quem sabe, compreender esses fenômenos tão atuais e ainda tão carentes de elucidação. Provavelmente somente a posteriori, só depois, alguns eventos possam ganhar mais substância em sua significação. E sem dúvida, outras áreas de conhecimento podem trazer contribuições preciosas a esse respeito.

Ficam aqui alguns questionamentos e algumas possibilidades de caminhos para refletir sobre o tema. Ainda que não haja tanta clareza, penso que é fundamental duvidar da imagem e das palavras que chegam até nós. Isso vale para o contexto específico da guerra, bem como para nosso contexto político nacional. É preciso ter cuidado e responsabilidade por aquilo que encontramos tanto dentro quando fora de nós.

Obs.: Vale assistir ao vídeo do Christian Dunker, disponível em seu canal no YouTube, em que ele trata de negacionismo. Nele, o psicanalista elenca diferentes tipos de negacionistas, evidenciando particularidades da negação para a psicanálise.