Em outro texto, falei sobre como a maternidade é plural, sobre como não podemos falar sobre maternidade no singular, porque ao fazer isso passamos por cima justamente das singularidades tanto das mães quanto de seus filhos. Recentemente, li o texto "Infâncias e parentalidade: nomeações, funções e funcionamentos", da psicanalista Ilana Katz, que está no volume "Tempo" da coleção Parentalidade & Psicanálise (orgs. Daniela Teperman, Thais Garrafa e Vera Iaconelli). Ilana, em um texto absolutamente fundamental, fez lembrar que infância também é plural.

A psicanalista mostra como, considerados os determinantes culturais, políticos e econômicos do Brasil, a infância não pode ser pensada sob uma única perspectiva. Toda vez que adotamos uma concepção de infância, estamos falando de algum lugar sociopolítico, portanto, devemos falar de infâncias, no plural.

Infâncias, enquanto conceito e como proposição, problematiza essa nossa fantasia de que, como sociedade organizada e regulada, protegemos todas as crianças e lhes conferimos "prioridade absoluta" (p. 120).

No senso comum, quando falamos de infância, algumas frases costumam vir à cabeça, como "lugar de criança é na escola", ou "as crianças são o futuro do país". Katz, no capítulo em questão, nos lembra que "(...) crianças deixam de ser o futuro quando nem todas as crianças cabem no futuro (p. 121).". Num país de profundas desigualdades como o nosso, dividido por classes e cor, sabemos (ou deveríamos saber) que nem toda vida parece ter o mesmo valor.

Se temos crianças protegidas, até mesmo superprotegidas, e inclusive superocupadas, com infinitas atividades em suas agendas, temos também aquelas totalmente vulneráveis, que não dispõem de uma casa com um mínimo conforto, saneamento básico, que não podem ir à escola com segurança, precisando às vezes se esgueirar por corredores para fugir de "balas perdidas". Crianças cujas vidas valem nada; crianças de uma "infância matável", como afirma Katz em seu texto.

(...) não há futuro quando não há indeterminação. Os que sabem como morrem não têm direito a viver a indeterminação da vida (p. 121).

O destino de uma grande parcela de crianças parece já estar selado. Assim, penso que a autora nos convoca a olhar para essas infâncias que ficam invisibilizadas. Afirmar que essas tantas crianças "não têm infância", por exemplo, parece um modo de tentar sustentar o ideal que criamos a respeito de uma "infância feliz", como se não houvesse outra, outras. Tais crianças têm sim uma infância, mas uma bastante distante de nossa fantasia.

Como Ilana afirma, "(...) ao revelar a ideia que tem sobre a infância, aquele que fala enuncia sua posição no laço social (p. 122)". Em outras palavras, não é possível falar de maneira descolada de uma posição sociopolítica. Queiramos ou não, estamos o tempo inteiro nos posicionando, revelando o lugar a partir do qual falamos. Admitir o plural do termo, parece-me, é uma maneira de enxergar aquilo de que desviamos o olhar, de lidar com essa verdade incômoda, para que aí nos impliquemos.