Durante a escritura da minha dissertação, fui me dando conta de como funciona meu processo de escrever. Essa observação tem se estendido e é um exercício intrigante, assim como proveitoso, porque a partir dela talvez seja possível evitar exigências que vão além ou aquém de mim.
Sou espaçosa. Como canhota, diversas vezes tive/tenho que juntar uma outra carteira ou mesa à esquerda para que conseguisse escrever. E muitas vezes juntei também uma à minha direita para esparramar minhas coisas, ocupando, no fim das contas, três cadeiras. Na minha escrita, algo semelhante vai se dando, me esparramo em inúmeras "abas", faço pequenas anotações em post-its, marco páginas em livros, reproduzo citações, etc. Depois, vou de uma aba a outra, de um rascunho a outro, de uma notícia a outra, de uma referência a outra, de um texto a outro, normalmente quase num flash, numa velocidade sináptica. O pensamento é mais rápido que as mãos e tento dar conta disso. Quase sempre falho.
Uma das coisas que por vezes se repete é que começo um texto pensando num tema, mirando algum assunto que quero tratar, mas escrever mostra-se, para mim, imprevisível. Acabo justamente me detendo naquilo que talvez eu possa chamar de processo, me vejo fisgada muito mais pelo percurso que me levou até ali que pelo destino. Quase como se ficasse fazendo uma constante retrospectiva, tentando (de forma inconsciente) dizer como vim parar ali, querendo falar daquele tal assunto.
Começo a me embrenhar por aquilo que seria somente o preâmbulo, começo a narrar uma pequena história da trilha. E aí, quase sem perceber, escrevo o texto inteiro somente sobre esse percurso e o bendito do tema que eu fitava inicialmente é como que jogado de lado, lançado num outro papel, à espera, em suspenso. Não sei quando, nem se voltarei a ele. Agora já é tarde, peguei outro rumo, um desvio, algo do começo do caminho me capturou e não posso mais retroceder.
Percebo que aí de fato o texto parece ganhar vida própria, toma um rumo próprio, chegando a um destino que eu, que pensava guiar, sequer poderia ter imaginado antes. Vem-me à mente uma daquelas obras em que há vários pregos colados a uma superfície, como um mapa, por exemplo, e em que se amarra uma linha, que vai de um prego a outro, desenhando uma teia, um emaranhado de linhas, num percurso caótico, desordenado, mas que ao fim forma um desenho.
Mas, como disse anteriormente, a cabeça é mais rápida e também imagino uma espécie de quebra-cabeça híbrido, em que tento encaixar uma peça a outra e depois faço um esforço de costura, experiência da linha que perfura o tecido e sai do outro lado, unindo dois fragmentos. Uma costura justa que quase não permita imaginar que já haviam sido dois pedaços separados e independentes. Ao me deparar com este tecido-quebra-cabeça, posso, então, olhá-lo como um todo. Mas provavelmente, em outro texto, em outro momento, virei a fazer associações com este anterior; quase como se eu escrevesse um texto único.
E quando as peças do quebra-cabeça parecem não se encaixar? Quando a linha não é capaz de perfurar o tecido? Permaneço esparramada, às vezes em dois, três textos diferentes, que parecem conversar entre si. Sinto que estão falando da mesma coisa, mas ainda não se encontraram verdadeiramente a ponto de se unir. Busco um advérbio, prestes a completar a frase, o advérbio vem até a beira do meu pensamento, mas sem escorregar para a concretude. É quase como se eu visse a palavra de forma embaçada, ou como se ela ecoasse distante dentro de mim e eu não pudesse expeli-la.
Um desvio momentâneo
Este texto foi escrito, até o parágrafo anterior, há cerca de dois meses. Permaneceu não publicado porque simplesmente não encontrei, na minha costura, a finalização, o arremate. Ensaiei terminá-lo com uma frase que se formulou na minha cabeça, mas que pareceu forçada, desconectada. Talvez não haja mesmo um fim para ele, talvez eu continue escrevendo pequenos rascunhos, fragmentos desse "texto único" a que me referia antes.
Foi então que, quando menos esperava, me deparei com o seguinte parágrafo de Encaixotando minha biblioteca de Alberto Manguel (sobre o qual comentei aqui), com o qual escolho arrematar:
(...) não consigo pensar seguindo uma linha reta. Eu divago. Acho impossível começar com pontos de partida factuais e subir uma escadaria bem iluminada, pisando em degraus lógicos, para chegar a uma conclusão satisfatória. Por mais forte que seja minha intenção inicial, eu me perco no caminho. Paro para admirar uma citação ou ouvir uma historinha; distraio-me com questões que não têm nada a ver com meu propósito, sou carregado por um fluxo de associação de ideias. Começo falando de uma coisa e termino falando de outra (p. 17).
Estamos de mãos dadas, Alberto.