Há livros que nos fisgam pelo título. Caderno proibido, de Alba de Céspedes –  foi um desses, além do fato de que a autora italiana é uma das influências de Elena Ferrante. Trata-se de um clássico da literatura italiana, traduzido para o português este ano pela Companhia das Letras. A história se passa em Roma, nos anos 50 e quem a conta é Valeria, uma mulher de 43 anos, de classe média, esposa, mãe de dois filhos e funcionária de um escritório.

Tudo começa num domingo ensolarado, quando Valeria sai para comprar cigarros para o marido na tabacaria e vê uma pilha de cadernos de capa preta na vitrine. Ela pede um dos cadernos ao vendedor, que lhe informa que é proibido, que aos domingos só podem vender tabaco. Há um fiscal na porta do estabelecimento. Ela responde: "Mas eu preciso, (...), preciso mesmo". Ele cede e entrega a ela um caderno.

A partir daí, Valeria passa a esconder o caderno, tendo que mudá-lo de lugar o todo tempo para que não o descubram. A protagonista não tem um lugar privado para suas coisas. Quando reivindica a posse de uma gaveta somente para si, para, quem sabe, guardar um diário, recebe como resposta do marido e dos filhos risadas. O que ela poderia querer escrever em um diário?

Fato é que Valeria passa a desejar que os filhos saiam para que possa ficar sozinha e escrever no caderno. Dá-se conta de que raramente fica sozinha e para criar essa oportunidade, em certo momento, "adultera as contas da casa" e compra ingressos para um jogo de futebol para o marido e os filhos, dizendo que os havia ganhado de uma colega de trabalho.

O caderno vai enredando-na no que considera uma trama proibida, de segredo, de esconderijo, de mentiras e álibis. Valeria tem um senso de obrigação tão rigoroso com os cuidados de sua família e da casa, que, por vezes, sente-se muito culpada por querer um tempo distante das responsabilidades para escrever em seu caderno.

Contudo, conforme o tempo passa, Valeria vai descobrindo a importância e a necessidade de ter um espaço só dela. O caderno é a inauguração desse espaço individual, um modo de dedicar tempo a si mesma. Mas, em determinado ponto, esse mesmo caderno passa a lhe parecer perturbador. Ela escreve:

Para me reencontrar tal como sempre pensei ser, preciso evitar ficar sozinha: ao lado de Michele e dos meninos, readquiro aquele equilíbrio que era minha prerrogativa. A rua, ao contrário, me atordoa, me lança numa singular inquietação. Não sei me explicar, mas fora de casa não sou mais eu. Basta sair pelo portão e me parece natural começar a viver uma vida totalmente diferente daquela costumeira (...).

A partir de sua escrita, o caderno funciona também como um convite a descobrir e ser uma outra Valeria, diferente da que "sempre pensou ser" – ou, poderíamos dizer, diferente daquela que levaram-na a pensar que era ou deveria ser. Sair do ambiente doméstico, em que parece comprimida pelas paredes e oprimida pelos papéis de mãe e esposa, surge como possibilidade de ser outra. E, assim, como Valeria escreve em um trecho, o caderno, com suas páginas em branco, e a rua mostram suas faces atraentes e perturbadoras.

Wooden pencil on blank spiral notebook
Photo by Kelly Sikkema / Unsplash

Alba de Céspedes constrói uma narrativa muito rica, que se aprofunda no universo dessa mulher comum e de sua subjetividade, tratando de todas as relações de Valeria; com sua mãe, seus filhos, seu marido, seu chefe e suas amigas. E o que parece atravessar, em alguma medida, todas essas relações, é uma espécie de perda de identidade de que vai se dando conta. Não passa despercebido, por exemplo, que seu marido a chame de "mamãe". Ela escreve:

Ao reler o que escrevi ontem acabo me perguntando se não comecei a mudar de índole a partir do dia em que meu marido, de brincadeira, passou a me chamar de "mamãe".

Essa passagem me remete a uma anterior, presente logo no início do livro:

Eram cadernos pretos, luzidios, grossos, daqueles que eu levava pra a escola e nos quais – antes mesmo de iniciá-los – eu logo escrevia, na primeira página, com entusiasmo, o meu nome: Valeria. (...)
Toda vez que abro este caderno, olho meu nome, escrito na primeira página. Sinto certa satisfação em ver minha letra sóbria, não muito alta, inclinada de lado (...).

Ao escrever seu nome no caderno quando o compra, a protagonista fabrica um passaporte para ser ela mesma. Com seu nome próprio – e o termo "próprio" é perfeito aqui –, marcado na folha em branco, começa a reescrever sua história. Encontra-se, ela mesma, com Valeria.

O caderno é a ruína e a salvação da personagem, pois promove um deslocamento, uma vertigem, fazendo-a questionar sua posição há muito restrita a mãe, esposa e dona de casa. Para escrever, Valeria é levada a um exercício de leitura de si mesma e do que a circunda, entra em contato com algo de si antes desconhecido. Pode se ver não como mãe ou esposa, títulos em grande medida anônimos e sempre colocado em relação a um outro, e sim como mulher, sujeito.

O caderno, esse objeto aparentemente banal e tão acessível hoje em dia – vendido a qualquer hora a qualquer dia – junto à palavra "proibido" vem lembrar de sua potência transgressora, perigosa. Nas mãos de uma mulher, um caderno pode colocar em xeque posições e lugares, questionar papéis e funções tidos como fixos, estanques.

Em uma passagem, ela escreve a respeito de uma conversa com sua filha: "Se eu não tivesse escrito, teria esquecido.". Eu acrescentaria que se escreve para não esquecer, escreve-se para não se esquecer de si mesma. Escrever confere substância, deixa marca, impressão.

Lembro, então, do ensaio O riso da Medusa, de Hélène Cixous, que assim se inicia:

É preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre a mulher, e que faça as mulheres virem à escrita, da qual elas foram afastadas tão violentamente quanto o foram de seus corpos; pelas mesmas razões, pela mesma lei, com o mesmo objetivo mortal. É preciso que a mulher se coloque no texto – como no mundo, e na história –, por seu próprio movimento.

A personagem de Caderno proibido testemunha a potência da escrita feminina e eu junto minha voz ao grito de Hélène: Mulheres, escrevam! Peguem seus cadernos e escrevam!