Recentemente, comentei aqui sobre o livro/filme “A filha perdida”. Pela internet, houve quem julgasse a protagonista como uma mãe má, uma mulher que não deveria ter se tornado mãe, pois não preenchia os requisitos para ser uma "boa mãe". Uma mãe que se mostrou, em certos momentos, impaciente, intolerante, até agressiva. Mas o que a levou a esse estado de impaciência, de intolerância? O que a fez ir embora e deixar suas filhas? Quantas "coisas" e/ou pessoas falharam para que ela chegasse a essa condição?
Ter filhos, é sabido, exige renúncias. Ingenuidade seria pensar que a vida permaneceria a mesma com a chegada de um novo ser, totalmente dependente e desamparado. Mas qual é a fronteira entre o que de fato precisa ser renunciado e aquilo que, ao contrário, precisa ser preservado?
Um dos grandes desafios da maternidade é entender e aceitar que um filho é outra pessoa, isto é, alguém separado, um outro. Criam-se filhos para o mundo, dizem. Isso inclui pensá-los como pessoas inteiras, com interesses próprios, objetivos, manias, habilidades, dificuldades. Penso que a escola, por exemplo, é um espaço fundamental para esse exercício. Constitui um lugar que é da criança e onde ela pode ser quem é independentemente dos pais; onde ela estabelece relações com seus pares e onde estabelece vínculos com outros adultos; onde realiza atividades distante dos olhos dos pais.
Sinto que avançamos muito nesse sentido, de pensar as crianças como sujeitos, de não exigir nem esperar delas coisas que, por exemplo, ainda não têm maturidade suficiente para fazer. Parece que temos calibrado melhor as demandas em relação a elas, assim como temos tido uma disponibilidade maior para escutar o que elas têm a dizer sobre o que pensam e sentem a respeito de si mesmas e do mundo.
Faço aqui a ressalva de que quando escrevo isso, estou falando de uma determinada infância, de um grupo de crianças que dispõe de uma série de direitos assegurados, assim como de mães com uma certa condição de vida. Tratarei disso mais especificamente em um próximo texto.
Os filhos são então pessoas inteiras, são "outros", por assim dizer. É um fato (ou deveria ser). Entretanto, por vezes, vejo que se esquece que os pais — mas aqui vou falar especificamente da mãe —, que a mãe é também uma pessoa. Também tem seus interesses, demandas, desejos, objetivos, sonhos. E aqui é crucial destacar que muitos destes não incluem a criança. Vejam que surpresa, a mãe é também uma pessoa, independente do(s) filho(s)!
Em outro texto, falei sobre como uma criança ocupa tempos e espaços. Inevitável. A própria gestação já é em si um momento em que se apagam, ou se borram, fronteiras. O corpo da mãe é, em alguma medida, invadido por outro corpo, que ali cresce e se desenvolve durante meses. Esse estado limita certas liberdades, impedindo que ela realize atividades antes corriqueiras, como restrições na alimentação ou em atividades físicas. Depois do nascimento do bebê, com a amamentação, seu corpo continua sendo partilhado com outro.
Entretanto, há uma fronteira sensível que, a meu ver, se cruzada, pode representar uma ameaça para ambas as partes. É quando a ocupação se torna efetivamente invasão, quando a ocupação passa ao campo semântico bélico. Alguém se apropria indevidamente de um território, alguém que não deveria estar ali entra. Essa invasão pode ser vivenciada como uma ameaça à própria existência da mulher, como pessoa independente dos filhos, com interesses e realizações potenciais fora do ambiente doméstico. É nesse ponto que a dona desse território pode levantar suas defesas e, grande parte das vezes, sem que perceba, agir de modo agressivo, tentando preservar seu espaço, assegurar sua existência.
Há um cansaço que é praticamente esperado quando se tem filhos pequenos, mas falo aqui de algo que está além do cansaço. Falo de quando a vida de uma mãe passa a se reduzir a cuidar dos filhos, de uma rotina extenuante, sem pausas, e que não é feita por escolha. Falo da solidão materna, do cuidado incessante de um filho por dias e dias a fio, quando necessidades básicas, como tomar banho, comer e dormir, tornam-se "autocuidado", tornam-se privilégios. Falo de quando a mãe vai sendo lentamente apagada como sujeito, esmagada pela maternidade.
É preciso romper com a ideia romantizada da mãe como um ser abnegado, irrestritamente dedicado aos filhos, um ser iluminado, infinitamente bondoso e amoroso. É preciso humanizar as mães, tirá-las do lugar de "guerreiras", heroínas superpoderosas. Quando uma mãe é encontrada em estado de privação — nos mais diversos sentidos —, é preciso se perguntar o quê ou quem falhou; falhou em enxergá-la de verdade, falhou em dar mínimas condições a ela de desempenhar outros papéis, falhou em possibilitar-lhe ser quem é além de mãe.