Lendo o último livro de Elena Ferrante, As margens e o ditado, sobre os prazeres de ler e escrever, encontrei muitas coisas sobre as quais penso e sobre as quais tentei/tento escrever. O livro reúne três conferências e um ensaio da autora sobre seu percurso de leitura e escrita. Destaco aqui a primeira conferência, intitulada "A caneta e a pena", por ser aquela que mais conversou comigo.

Nela, Ferrante fala sobre a "ânsia de escrever" e de dois tipos de escrita, um aquiescente e outro impetuoso. Para isso, resgata a menina que foi na escola primária, que precisava escrever dentro das margens dos cadernos daquela época. De maneira semelhante a uma folha de papel almaço, havia duas linhas vermelhas na vertical, uma à esquerda e outra à direita e linhas pretas horizontais. Era preciso respeitar as margens e não ultrapassá-las – tarefa com que quase todo mundo se deparou – sob risco de alguma punição.

Ferrante conta, então, como esse treinamento influenciou seu modo de escrever, criando nela uma ambivalência. Ao mesmo tempo em que sentia a satisfação de escrever dentro das margens, respeitando o alinhamento, tinha também uma sensação de perda ao conseguir fazer isso. Ela relata sobre seu processo de escrita, sobre como começou a escrever, ainda menina. Fala sobre a atenção que se deveria dar, na literatura, à "maneira como imaginamos arrastar para fora, por meio da palavra escrita, um "dentro" fantasmático, por sua natureza sempre fugidia" (p. 19).

[Remeto o leitor ao texto Escrever nas margens, em que falo sobre as preciosidades que se encontram justamente nas margens.]

A autora afirma:

(...) acontece uma cisão surpreendente: o eu de quem quer escrever se separa do próprio pensamento e, com essa separação, vê aquele pensamento. Não é uma imagem fixa e definida. O pensamento-visão se mostra como algo em movimento — levanta-se e abaixa-se — e tem a tarefa de se manifestar antes de desvanecer. O verbo é esse mesmo, “manifestar-se”, o que é significativo, pois remete a uma ação que se realiza graças à mão. Aquilo que está diante dos olhos do eu — algo móvel, portanto vivo — deve ser “captado com a mão” dotada de lápis e transformado, no pedaço de papel, em palavra escrita. (...) O esforço se deve ao fato de que o presente — todo o presente, até o do eu que escreve, uma letra após outra — não consegue reter com nitidez o pensamento-visão, que sempre vem antes, que é sempre o passado e que, por isso, tende a se ofuscar. Eu lia aquelas poucas linhas, arrancava delas a ironia, forçava-as, adaptava-as como queria. E imaginava uma corrida contra o tempo, uma corrida na qual quem escreve sempre fica para trás. De fato, enquanto as letras se alinhavam rapidamente uma após outra, impondo-se, a visão fugia e a escrita estava sempre fadada a uma incômoda aproximação. A escrita demorava demais para fixar a onda cerebral. (p. 19-20).

Para mim, Ferrante consegue colocar em palavras o processo enigmático de transformar pensamento em escrita. No texto Minha escrita, tecedura, fiz uma tentativa de falar disso, dizendo da velocidade do pensamento e da lentidão das mãos – sempre atrasadas. E com o termo "pensamento-visão", ela parece sintetizar o que eu não sabia bem explicar, quando dizia: "É quase como se eu visse a palavra de forma embaçada, ou como se ela ecoasse distante dentro de mim e eu não pudesse expeli-la.".

Vivo com a sensação de que deixo passar muitas ideias por não escrevê-las no exato momento em que me ocorrem. Por diversas vezes, ensaiei ter sempre um caderno comigo para anotar tudo o que me ocorresse, desde citações de livros, frases pescadas em conversas, pensamentos meus. Nunca durou muito. Na verdade, as palavras vão ficando esparramadas em diferentes suportes, nos meus cadernos, nas notas do celular, nas notas que insiro em palavras no Kindle em madrugadas insones, em rascunhos que faço no meu editor de textos, nas margens dos livros que risco e rabisco. E, em alguma medida, encontro uma tradução disso no livro de Ferrante. Sejam obviamente guardadas as devidas proporções, uma vez que Ferrante é Ferrante e se refere à escrita de romances, de ficção.

Black pencil shavings
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O que destaco é que um texto que se encontra aqui na verdade nasceu absolutamente fragmentado. É fruto de uma atividade laboriosa de organização, de catar pedaços esparsos, em diferentes cantos, e costurá-los, alinhavá-los. Ou, para usar as palavras de Elena, colocá-los dentro das margens.

Por vezes, quando finalizo um texto e o publico aqui, olho-o pronto e sinto também uma espécie de desperdício, no sentido de que quem vai lê-lo, o fará por poucos minutos, às vezes 2, 3 minutos, sem sequer imaginar quanta coisa há por trás dele, quanta coisa está presente, de maneira ausente, em sua tecedura. Quantas citações encontrei pelo caminho, amarrando-as umas às outras, quantos textos, livros, palavras soltas no ar, me inspiraram e me trouxeram até aqui. E quantos pensamentos ficaram perdidos sem encontrar o espaço para caber nas margens.

Entretanto, novamente, Elena Ferrante lança um clarão com suas palavras. Peço licença para transcrever mais um trecho extenso.

Durante boa parte da minha vida, escrevi páginas lentas com a única esperança de que fossem preliminares, de que logo chegaria o momento daquele impulso irrefreável, quando o eu que escreve a partir do seu fragmento de cérebro, com um movimento repentino, se apodera de todos os eus possíveis, de toda a cabeça, do corpo inteiro, e potencializado dessa maneira começa a correr recolhendo para a sua rede o mundo que lhe serve. São belos momentos. Algo pede para se tornar manifesto, dizia Svevo, para ser captado pela mão que escreve. Algo em mim, mulher abjeta e vil, dizia Gaspara Stampa, quer sair do jogo habitual e encontrar inspiração e estilo. Contudo, na minha experiência, esse algo evita facilmente a captura e se perde. Claro, podemos reevocá-lo, podemos até encapsulá-lo numa frase bonita, mas o instante em que o objeto apareceu e o instante seguinte, em que você se põe a escrever, devem encontrar uma coordenação mágica que desencadeará a alegria da escrita ou teremos de nos conformar com embromar por meio das palavras, esperando uma nova e fulgurante ocasião que nos encontre mais preparadas, menos avoadas (p. 27-28).

A reunião dessas palavras, "impulso irrefreável", "belos momentos", "coordenação mágica", "alegria da escrita", "nova e fulgurante ocasião", indica que, se há algo que se perde, se há algo de desperdício, há também um frisson, uma sensação de fazer magia com o pensamento e as mãos. E isso, esse gozo, não se dá a conhecer por quem lê um texto pronto, assim como, num espetáculo de teatro, não se revela ao espectador o mistério, o deleite de ver e sentir um trabalho árduo, realizado nos bastidores, transformar-se, traduzir-se em outra coisa - essa sim, exibida aos olhos do espectador. Pura delícia guardada e vivida por quem escreve, atua, dirige.

Parece-me que a sensação que pode se aproximar disso é justamente aquela de encontrar num espetáculo, num livro, um pouco (ou muito) de nós mesmos, assim como me encontrei no livro de Ferrante. A experiência de encontrar fora, no trabalho de outras mãos, algo de dentro, algo de si. Um êxtase que simultaneamente agita e apazigua.