Não tenho recordação de um período em que fosse necessário tanto estômago para acompanhar as notícias. Pandemia, número de mortos pela pandemia, CPI da covid, Amazônia em chamas, liberação recorde de agrotóxicos, desemprego, alta no preço dos alimentos, fome, racismo, feminicídio, transfobia, violência policial recorde (muitíssimo ligada ao racismo), corte do orçamento da educação... Lá fora, situação dos refugiados, terremoto no Haiti, volta ao poder do Talibã no Afeganistão... Uma verdadeira enxurrada de notícias trágicas com as quais somos bombardeados incessantemente, seja na internet, seja na TV.
A situação do Afeganistão domina os noticiários desde ontem e com isso, a comoção das pessoas ao verem as imagens de caos e desespero no aeroporto de Cabul, com pessoas se pendurando nos aviões. Além disso, vimos relatos de mulheres afegãs, verdadeiramente preocupadas com o retrocesso que virá com a tomada de poder pelo Talibã, o que ameaça direitos conquistados e a própria vida dessas mulheres.
Muitas pessoas no Brasil têm expressado sua consternação em relação ao drama por que passa o Afeganistão e, junto a elas, percebo um movimento de questionar essas pessoas a respeito de sua preocupação com o que está fora quando tanta coisa vai mal no nosso próprio país. Bom, é verdade; minha lista acima, que não é exaustiva, traz várias questões complexas que merecem atenção e dedicação para serem solucionadas ou ao menos encaminhadas. Em seu texto, "Cabul é aqui", Renata Corrêa, por exemplo, nos lembra de que, no Brasil, os direitos das mulheres também têm sido ameaçados e alguns efetivamente violados, mostrando que há algo que nos aproxima, em alguma medida, do que pode acontecer no Afeganistão.
A consciência dos problemas nacionais parece-me fundamental para que possamos exercer nossa cidadania, cobrar por nossos direitos, pressionar os políticos. Mas sinto, muitas vezes, não apenas sobre a situação afegã, uma espécie de revolta de pessoas com aqueles que se indignam com questões internacionais, algo como "Ah! Mas e o Brasil?!". E não apenas com questões de outros países, mas também com um problema e não com outro.
Isso me traz algumas perguntas. Seria mesmo humanamente possível deixar-se afetar igualmente por todas os problemas nacionais e internacionais? Todos os problemas nos tocam da mesma maneira? Por que será que, em meio ao mar de notícias tristes, somente uma delas me faz chorar? Por que será que passo dias pensando em somente uma delas? Quantos sofrimentos cabem no meu peito?
Em "Psicologia das massa e análise do eu", de 1921, Freud dedica um capítulo à questão da identificação, que seria a maneira mais elementar de ligação afetiva com outra pessoa. O texto é longo e permanece extremamente atual (inclusive para pensarmos o momento político que vivemos hoje no país), mas destaco o seguinte trecho para pensar as perguntas anteriores:
(...) [a identificação] pode surgir a cada vez que é percebido um novo elemento comum com uma pessoa que não é objeto das pulsões sexuais. Quanto mais importante for esse elemento em comum, tanto mais bem-sucedida deverá ser essa identificação parcial e, assim, corresponder ao início de uma nova ligação (Freud, 1921, Obras Incompletas de Sigmund Freud, editora Autêntica).
Freud nos dá o caminho para pensar nessa afetação provocada por uma notícia e não por outra. Perceber o elemento comum que me liga, ainda que de maneira inconsciente, a algum aspecto ou pessoa de uma notícia que leio. Em outras palavras, há algo meu naquilo que leio, naquele acontecimento extraordinário ou trágico, algo que se conecta a mim e que, portanto, me afeta, me toca. Sendo assim, parece sem sentido indignar-se com a indignação ou o sofrimento do outro por uma causa e não por outra. Trata-se de uma "escolha" inconsciente, de algo fora que se engancha em mim e é, portanto, mais do que legítima.
Ainda, em uma nota de rodapé, reconhecendo não ter esgotado a questão da formação da identificação, Freud afirma:
Partindo da identificação, um caminho leva pela imitação até a empatia, isto é, à compreensão do mecanismo que nos torna possível sobretudo uma tomada de posição em relação a outra vida anímica (idem).
Que bom que nos identificamos, que temos empatia, que bom também que não nos afetamos por tudo e todos do mesmo modo, para que possamos sentir sem nos paralisarmos, para que possamos sobreviver e ter algo a investir nas causas que nos movem, algo a contribuir, algo de concreto para modificá-las.
(...) Pense no Haiti
Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui (...) (Caetano Veloso e Gilberto Gil).