Traduzir e trair em psicanálise
Lembro muito de um professor da graduação que repetia Traduttore, traditore, expressão italiana que em português quer dizer Tradutor, traidor. À época eu não compreendia com profundidade a expressão, mas fato é que ela me marcou e frequentemente lembro-me dela.
Ao pesquisar a respeito, descobri um texto interessante, escrito justamente por um tradutor, que conta a origem da expressão e mostra como ela é incômoda e mal vista pelos tradutores; como traz uma conotação negativa para a atividade desses profissionais. Fiquei surpresa com essa interpretação, pois nunca tinha pensado sobre esse dito dessa maneira, mas entendo o incômodo, pois ele traz uma ideia de uma intencionalidade ruim por parte do tradutor, a de distorcer.
Junto a isso, percebo como o trabalho do tradutor muitas vezes passa despercebido. Trata-se de um trabalho complexo, ao qual devemos a leitura de tantas preciosidades dos mais diversos idiomas. Talvez com a internet, pensemos pouco sobre isso, mas me parece um grande privilégio poder ler a obra de um autor russo, austríaco, indiano, quando não sabemos suas línguas.
Depois de ler tal texto, fiquei pensando sobre como eu entendo a expressão Traduttore, traditore. Quando meu professor repetia (nem sei se repetia, ou se hoje parece repetido porque me marcou) essa frase, referia-se à obra de Freud, cujas diversas traduções despertam tanta discussão e sobre a qual há muitos artigos. É comum encontrarmos textos, capítulos, artigos inteiros dedicados às vezes a apenas uma palavra em alemão e as diferentes possibilidades de tradução para o português, com suas respectivas vantagens e desvantagens. Com certeza, há escolhas problemáticas, que podem distorcer muito a ideia original, mas o fato é que quando ouço a palavra traição nesse contexto, não a tomo de modo negativo.
Curiosamente, dou-me conta desta contradição, a psicanálise - que guia minha escuta clínica (e não só ela) -, leva a palavra a sério, estamos verdadeiramente interessados nas palavras, pois entendemos que a escolha delas não é um dado aleatório. Por outro lado, em alguma medida, não as levamos tão a sério, no sentido de que sabemos que não há um sentido unívoco das palavras, o significado delas transita, muda, de acordo com quem as fala, escuta, escreve ou lê. Cada um faz tudo isso a partir de um lugar no tempo e no espaço, a partir de uma história singular, capaz de modificar o sentido atribuído às palavras. O trabalho do analista é um trabalho de escuta, uma escuta diferenciada, flutuante.
Petê Rissatti, autor do texto que comentei no início, escreve assim:
Como os escritores, que contam com a “suspensão da realidade” para que o leitor acredite nos fatos que ele escreve, sejam eles mais calcados na realidade ou extremamente fantasiosos. O tradutor também conta com essa capacidade do leitor: que ele, durante a leitura, se convença de que o autor teria escrito daquela maneira se soubesse português, pois o tradutor – essa figura ainda malvista por muitos – se esmerou para compreender, desmontar e remontar a obra de forma que emulasse o texto original (Petê Rissatti).
Em uma análise, estamos constantemente fazendo também um trabalho de tradução, transformando, modificando, desmontando e remontando, ficcionalizando nossa história. Em certa medida, talvez estejamos traindo a forma original como as coisas se deram, os fatos. Todavia, em psicanálise, não falamos a partir do campo da realidade material, e sim da realidade psíquica.
No prefácio do volume "Arte, literatura e os artistas" das Obras Incompletas de Sigmund Freud, o tradutor Ernani Chaves afirma:
Se é verdade que a narração [Erzählung] implica uma cadeia que provoca sucessivas "distorções" e "equívocos", trata-se então de tentar entender o que torna possível tais distorções e equívocos, sob os quais repousa a "verdade histórica". (...) se há uma "verdade histórica", ela só se mostra por meio das "distorções" e "equívocos" provocados pela cadeia narrativa. (...) Vejam como se constitui uma cadeia narrativa, que começa com o sonho sonhado, passa pelo sonho contado e, enfim, por aquele ou aqueles que escutam a sua narração e que tentarão descobrir o seu "mistério". (p. 31-32).
O "mistério" de um sonho só se dá a ver quando traduzimos o sonho sonhado em sonho contado, e este conteúdo manifesto em sua sucessiva elaboração. Em outras palavras, só nos aproximamos do mistério quando aceitamos nos arriscar a trair isso que apareceu sob um formato que, no fundo, é intraduzível. De uma palavra a outra, de um sentido a outro, de uma língua a outra, algo sempre será perdido, traído, naquilo que guarda de intraduzível.