A série Treta (no original, Beef), lançada esse mês pela Netflix, já é considerada o maior sucesso recente do respectivo streaming. Na internet, numa primeira busca, encontra-se a seguinte sinopse "Um incidente no trânsito desperta a fúria e os impulsos mais sombrios de dois desconhecidos: um empreiteiro falido e uma empresária frustrada". Quem a assistiu sabe que "falido" e "frustrada" estão longe de dar conta dos protagonistas. Por outro lado, "fúria e os impulsos mais sombrios" talvez se aproximem mais do que se desenrola a partir do incidente de trânsito.

Amy, a "empresária frustrada", trabalha muito e é bem sucedida em seu trabalho. Está prestes a fechar um negócio que permitirá que esteja mais em casa com sua família, algo com que sonha. Na medida em que a trama se desdobra, descobrimos que ela tem questões e feridas mais profundas, carregadas desde a infância.

Logo após o incidente de trânsito, numa das primeiras cenas, Amy tenta contar ao marido o que aconteceu no trânsito (na realidade, no estacionamento de uma loja). Logo ele a interrompe e a lembra de pensar positivo, diz que talvez precisem retomar o « livro de gratidão ». Em outra cena, também com seu marido, Amy tenta falar sobre o vazio que sente dentro de si. Ele logo afirma que entende do que ela está falando, interrompendo sua fala.

Reiteradamente, Amy tem sua voz e seus conflitos abafados, silenciados. Há algo muito grande e importante de sua subjetividade que simplesmente não encontra espaço para aparecer, em nenhuma relação. O silêncio cobra um preço. E é justamente na "treta" que tem com Danny, o "empreiteiro falido", que algo disso pode emergir.

Do outro lado, Danny tenta melhorar de vida, sempre prestativo e bem-intencionado, mas acabando por fazer escolhas bastante questionáveis ao sentir que não consegue ter sucesso. Tenta sempre se reerguer, mas a verdade é que se sente extremamente frustrado, sem obter resultados de seus esforços. É também na relação com Amy que sua face mais obscura vai se revelando.

Ambos, Amy e Danny, oscilam entre impulsos destrutivos e aqueles ditos "bons". Danny luta constantemente contra seu lado sombrio, evitando em alguns momentos – às vezes no último minuto –, causar uma tragédia. Alguns diriam: "no fundo ele é uma boa pessoa". Já Amy chega a dizer algumas vezes que é uma pessoa ruim, como se não tivesse conserto, estivesse quebrada para sempre.

Ao longo da série, outros personagens vão também mostrando seu "lado bom e seu lado mau", suas fragilidades, seus desejos. Mas no que se refere especificamente aos protagonistas, a quem temos maior acesso, por que não conseguem frear seus impulsos violentos? Como chegam à assustadora escalada que testemunhamos?

No artigo "O outro e a violência da cultura", Tania Rivera nos lembra:

A cultura é lugar de mal-estar porque ela é sempre conflituosa, nela somos sempre estrangeiros. E ela agencia conflito e bem-estar sobre um fundo, quase sempre recalcado, de extrema crueldade (Rivera, 2008, p. 76).
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Será que nossa cultura permite que a raiva e a agressividade apareçam? Ou reproduz uma fala semelhante à do marido de Amy, de uma certa "positividade tóxica"? Rivera observa que atualmente somos levados a propagar um discurso moral sobre a violência, como se ela não fosse também parte inegável e constituinte de nossa natureza:

O homem é às vezes uma “besta selvagem”, não há lugar para qualquer defesa de uma natureza humana a salvo da violência. Não há como tratar a violência como um desvio comportamental. Não basta repudiá-la, é necessário dar lugar a ela em nosso pensamento, com todo seu desafio, toda sua dor (p. 75).

Em sua teoria pulsional, Freud afirma que pulsão de morte e pulsão de vida estão presentes nos seres vivos de maneira mesclada. "A vida consistiria nas manifestações do conflito ou na interação entre as duas classes de instintos (...) (Freud, 1923, Dois verbetes de enciclopédia. A teoria da libido, Edição Standard, p. 274, ). Mas como dar lugar a isso que está em nós e que é da ordem da morte sem que instalemos a barbárie?

Em  Lembrar, repetir e perlaborar, Freud traz a ideia de uma "compulsão para a repetição" – que será tratada em Além do princípio do prazer, onde ele desenvolve o conceito de pulsão de morte  –, a partir da qual o analisando repetiria em vez de lembrar. O psicanalista afirma:

(...) ele repete tudo que já se impôs a partir das fontes do seu recalcado em sua essência evidente, suas inibições e posições inviáveis, seus traços de caráter patológicos. Pois ele também repete todos os seus sintomas durante o tratamento. (p. 156, edição Autêntica).

O analista tem, então, o objetivo de fazer o analisando "lembrar à moda antiga", isto é, reproduzir algo dos impulsos em âmbito psíquico e não motor. Assim, em uma análise, trata-se de buscar que o analisando recorde falando, para evitar que atue. É um "(...) triunfo do tratamento a resolução de algo através do trabalho de lembrar, que o paciente quer descarregar através de uma ação (p. 158).".

Temos então apontado aqui um caminho para lidar com os impulsos agressivos e violentos, para lidar com a raiva. É preciso abrir espaço para colocar tal afeto no campo da palavra e, nesse sentido, a análise coloca-se como espaço privilegiado de escuta  do trauma, da violência de que também o sujeito foi objeto. A psicanálise não se furta a olhar e escutar aquilo que é da ordem do horror e da destruição, numa espécie de assepsia e negação do que é humano; ao contrário:

O psicanalista é justamente aquele que é convocado por este sinal [do desastre], e aquele que toma como sua missão a trans-missão do desastre. Mesmo sabendo que não se pode dele falar cabalmente – aliás, isso resiste à fala, é quase impossível chegar em seu cerne –, a fala, no melhor dos casos, consegue contorná-lo, dar-lhe uma margem (Rivera, 2008).

Aquilo que não pode ser falado, dito, pode terminar justamente por ser « atuado », colocado em ato, com todas as consequências que isso pode trazer. É muito disso que vemos se desenrolar na trama de Treta.

[Abaixo, há spoilers sobre a série].

Não à toa, após muitas reviravoltas, isolados e sob efeito de uma planta alucinógena, Amy e Danny acabam por compartilhar suas questões mais profundas, suas maiores dores e medos, aquilo que não havia encontrado lugar em nenhuma relação. Na cena final - provavelmente a mais bonita de todos os episódios - é justamente a Danny, por tanto tempo seu inimigo, que Amy termina abraçada. Talvez não haja intimidade maior que compartilhar com alguém seu lado mais sombrio e funesto.