Diferentes pessoas atravessam a faixa de pedestre diante do aeroporto. A maioria com seu celular nas mãos, enviando áudios, fazendo chamadas de vídeo. Uma mulher atravessa, com sua franja enrolada num bobe de cabelo, envia um áudio, anda como se estivesse desfilando. Em poucos minutos, atravessa de volta abraçando outra mulher. Casais passam com filhos pequenos. Mais à frente, pessoas aguardam na parada de ônibus. Eu, dentro do carro, com um livro nas mãos, oscilo entre ler e observar os transeuntes.
Nessa alternância, penso justamente na escrita de Deborah Levy, autora do livro que tenho em mãos, O custo de vida – segundo volume de sua trilogia Autobiografia Viva. A romancista, dramaturga e poeta britânica já havia me conquistado no primeiro volume. Ao narrar os acontecimentos de sua própria história, não o faz de forma exatamente contínua e linear, vai apresentando diferentes situações vividas por ela, com reflexões e comentários, por vezes acompanhados de citações de obras de escritores. Além disso, destaca em seu relato diálogos e eventos aparentemente banais, cotidianos.
É possível identificar claramente em sua escrita essa habilidade tão bonita que escritores têm de lançar um olhar aguçado para os eventos mais ordinários e colocá-los em palavras que os elevam a outro status. Ver o que muitas vezes passa imperceptível, ver o invisível, ver com o que chamo de "olhar literário". Levy afirma:
O encanto da escrita, como eu a entendia, era um convite para penetrar no intervalo entre a aparente realidade das coisas, ver não somente a árvore, mas também os insetos que vivem em sua infraestrutura, descobrir que tudo está conectado na ecologia da linguagem e da vida. (p. 37).
Ler literatura tira a poeira dos olhos. A literatura está relacionada à linguagem escrita, mas o "olhar literário" permite que, ainda que não estejamos escrevendo, desfrutemos do que ele pode nos trazer. Ela acrescenta dimensões às banalidades, faz enxergar novas camadas no tecido da vida.
Particularmente gosto de ver a vida entremeada por frases, citações que encontrei em livros, assim como Deborah faz em seu texto. Da mesma maneira que muitos imaginam uma trilha sonora para diversos momentos de suas vidas, fantasio a voz de uma narradora declamando citações que guardei em meus cadernos e que de alguma forma estão relacionadas ao que vivo e sinto.
Tenho a literatura comigo, mesmo quando não estou lendo. Convoco-a para a vida e assim posso me relacionar com o tempo de outro modo. Um tempo de espera, como o que eu passava dentro do carro, transforma-se em oportunidade de observação da vida humana e do mundo e, quem sabe, de escrita. Pensando sobre isso, eis que encontro no postal que veio com o Diário II de Virginia Woolf, o destaque da seguinte passagem:
Domingo, 22 de Janeiro de 1922
Por que me dou ao trabalho de ser tão detalhista com os fatos? Creio que é como percebo o passar do tempo: muito em breve já não haverá mais Towers Place; nem ramos; nem eu que escrevo. Sinto o tempo correr como um filme no cinema. Tento detê-lo. Cutuco-o com minha pena. Tento imobilizá-lo onde está.
(Os diários de Virginia Woolf: Diário II 1919-1923, editora Nós).
Quando observo aquilo que me circunda com um olhar literário em alguma medida imobilizo o tempo, seguro nas mãos o instante-já, para ver detidamente aquilo que talvez pudesse passar como num piscar de olhos. Posso guardar o tempo com a pena, o lápis ou o tlec-tlec do teclado. Dispondo desse recurso, sinto que é possível desfrutar da vida na contramão, isto é, com um dos maiores luxos atuais: fazer as coisas com lentidão.