“A filha perdida”, de Elena Ferrante, publicado no Brasil em 2006, foi o primeiro livro que li da autora e me impactou bastante à época. Quando soube que já estava disponível a adaptação do livro na Netflix, quis relê-lo, já que havia lido há alguns anos. Decisão muito acertada. Além da experiência, sempre rica, de reencontrar um livro em outro momento da vida (comento sobre isso aqui), ter o livro fresco na memória encurtou a lacuna que costumamos encontrar quando vemos o filme baseado em um livro. A tradução de uma linguagem para outra sempre implica perdas, às vezes distorções.

O fato de que tinha tudo muito recente na cabeça me permitiu quase ir, automaticamente, preenchendo os espaços que ficaram nessa conversão do escrito a imagem. E, claro, também me permitiu observar como Maggie Gyllenhaal, diretora do filme, foi bastante fiel em sua adaptação. A atuação de Olivia Colman, como era de se esperar, dispensa comentários. O livro, narrado em primeira pessoa, aparece no rosto de Colman, em suas expressões e microexpressões, em sua voz, em suas entonações, em seus gestos e movimentos. Quantas sutilezas.

Uma das razões pela qual o filme tem mobilizado tantos comentários é que ele trata, sobretudo, de maternidade. Só isso é o suficiente para que renda muito pano para manga. Soma-se a isso o fato de que Ferrante traz uma abordagem realista – por vezes real demais - da maternidade. Por realista quero dizer o que hoje costuma-se chamar “maternidade real”, não romantizada.

Quem já teve oportunidade de ler os outros livros da autora sabe que esse tema é caro a ela. Ela mostra o que há de mais cru e até violento na experiência radical que pode ser a maternidade. "A filha perdida" trata da história de Leda, uma mulher em seus 48 anos, separada, mãe de duas mulheres de 25 e 23 anos. Leda é professora universitária e vai passar uns dias na praia, para descansar e também trabalhar. Lá, depara-se com uma família, mais especificamente com uma jovem mãe, que passa a observar todos os dias. Ver a relação dessa mãe com sua filha de 5 anos, aciona em Leda diversas lembranças, tanto a partir de seu lugar de mãe como de seu lugar de filha. A história vai se desdobrando a partir das lembranças suscitadas bem como da interação que vai se estabelecendo entre a protagonista, a jovem mãe e sua família.

Se Elena Ferrante apresenta “a real” da maternidade, a própria Leda representa bem isso, não apenas no que se refere a ser mãe, mas na vida como um todo. Leda não busca ser agradável nem agradar, é transparente em suas emoções e reações. Não tenho intenção de narrar o filme, muito menos contar o desfecho, mas destaco abaixo duas cenas.

Do filme "A filha perdida" (2020), Netflix. Reprodução.

Em uma delas, após certo desentendimento ocorrido na praia entre Leda e a família da moça, a cunhada da jovem mãe, que havia sido rude com ela, pede desculpas e oferece um pedaço de bolo, puxando assunto com a protagonista. A cunhada está grávida e pergunta se Leda tem filhos, ao que ela responde que tem duas meninas. Leda também pede desculpas por mais cedo, diz que estava aflita, ansiosa, ao que a mulher diz algo como “O sol pode fazer isso e talvez suas meninas, estar longe das suas filhas.”. Leda responde, “Bem, você vai ver... As crianças são uma responsabilidade enorme.”. Não sou tradutora, e deve haver razões para que essa tradução tenha sido feita na legenda, mas me chama a atenção a expressão usada por Leda no original. Ela diz “Well, you’ll see… Children are a crushing responsibility”. O adjetivo “enorme” não dá conta do significado que se alcança com “crushing”, que tem uma conotação mais pesada, de esmagamento, de algo arrasador.

A outra cena é quando Leda, mais jovem, usando headphones, tenta trabalhar, e seu marido está ao telefone. As filhas começam a demandar atenção, chorando. O marido a chama, como quem diz “Vá lá olhá-las, estou numa ligação importante”. Ela diz “É domingo, é seu dia” e volta ao trabalho. O marido toca em seu braço e insiste que ela atenda as meninas, “Eu estou trabalhando”. Leda responde “Eu estou sufocada” (na tradução, o paralelismo dos gerúndios em inglês se perde; "I'm working" e "I'm suffocating").

Essas duas cenas parecem se conjugar, apresentando a maternidade como essa função que se esparrama tomando todos os espaços e pode ser, para usar um sinônimo de "crushing" em inglês, “overwhelming”, algo que sobrecarrega, que exaure.

Ainda que vivamos um tempo em que a “maternidade real” já tem lugar, penso que a escrita de Ferrante e, aqui, o filme baseado em seu livro - disponível em um grande serviço de streaming -, têm uma função importantíssima. Trazem à luz aquilo que muitas vezes não se ousa dizer sobre essa experiência, aquilo que as mães não se sentem autorizadas nem legitimadas a falar porque serão julgadas; mostram, sem medo, a profunda e trabalhosa ambivalência da função materna. Ainda há muito chão até que se possa falar das mais distintas e singulares vivências do que é ser mãe, de suas belezas mas também de suas agruras, sem que haja julgamentos, críticas e imposições de como deve ser essa mulher, ou melhor, de como devem ser essas mulheres.

Dito isso, como obra individual, o filme "A filha perdida" é belo, emocionante, tantas vezes desconfortável, incômodo, silencioso e simultaneamente barulhento.