Durante os momentos mais agudos da pandemia, cozinhei bastante, fazendo receitas antigas e às vezes novas. Era impelida a fazer um bolo, por exemplo, quase como uma necessidade, um impulso que precisava ganhar lugar. Claro que saborear o bolo era (é) delicioso, mas percebo que aquilo me dava um sentido, tinha uma função terapêutica, quase curativa, como se eu nem precisasse comer o bolo depois de pronto. Era um fazer apoiado no processo do fazer, do criar, muito menos que no resultado.
Refiro-me aqui a algo que toma forma sem se apoiar em uma eventual utilidade, em um resultado, ou seja, a algo que não está ligado a produtividade, como foi tão amplamente defendido durante a pandemia (aproveitar o tempo, fazer cursos, aprender coisas novas, etc). Trata-se de algo que se coloca na contramão do time is money, de um fazer cuja motivação específica não sabemos dizer de modo claro, ela aparece de forma vaga, quase misteriosa. Fazemos sem saber bem por que fazemos, fazemos porque precisamos fazer, às vezes até sem saber aonde iremos chegar.
Um elemento intrigante desse fazer é que ele parece nos colocar num estado muito peculiar, um estado outro, do qual podemos tirar muito proveito. Falo de um estado em que não estamos nem em vigília nem em sonho, ficamos como que suspensos no limiar entre o acordado e o dormindo, num entre, na fantasia. Vejo agora que pode ser uma espécie de descanso ativo.
Pensar sobre isso me leva ao célebre texto de Freud O poeta e o fantasiar, de 1908, em que ele faz um paralelo entre a atividade poética e a brincadeira infantil, dizendo que a criança, ao brincar, comporta-se como o poeta, criando seu próprio mundo. Freud compara ainda o poeta ao sonhador diurno, e a criação artística com o devaneio, o sonho diurno (que me remete justamente ao entre a que me referia anteriormente). Assim, as criações literárias, artísticas, seriam "(...) uma continuação e uma substituição, a uma só vez, das brincadeiras infantis (p. 63, na edição da Autêntica).".
Freud desdobra uma série de outros aspectos do fazer poético nesse texto, mas o que aqui quero chamar a atenção é o elemento infantil, pois, parece-me, esse tal fazer de que falo hoje, as crianças o fazem com mestria. Brincam sem saber o porquê (ou sabendo muito bem), entram no faz-de-conta e aí ficam, entregues, despreocupadas com resultado ou produtividade. O brincar é o fim em si. Nesse sentido, Manoel de Barros nos lembra:
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Em um texto de 1966, intitulado Vivendo criativamente, também tratando de algo que se aproxima do objeto de Freud no texto citado anteriormente, Winnicott afirma que:
Em algum lugar do esquema de coisas pode haver espaço para que alguém viva com criatividade. Isso envolve preservar algo de pessoal, talvez algo de secreto, que é inconfundivelmente você mesmo (p. 48).
Em meio à vida apressada, de cobrança por produtividade, que seja possível ser menos adulto, mais criança, mais Manoel. Que seja possível encontrar o nosso fazer, fazer nossos brinquedos e, quem sabe aí, no inútil, encontrar também algo de muito nosso, de muito íntimo, que nos permita respirar e até descansar.