Lá embaixo, o homem anuncia que há picolés de fruta, de Oreo, de chocolate, de doce de leite. Não sei por que isso importa, mas ao ouvir essa fala, estabeleço um contraste com a infinidade de coisas que tenho para fazer. Em vez de retomá-las, decido fazer uma pausa, decido justamente suspender o tempo e não me deixar esmagar pelas tarefas.
Durante essa semana, organizando papéis antigos, encontrei um caderno de uns doze, treze anos atrás, que funcionava como um tipo de diário. Comecei a lê-lo buscando localizar na memória a que época exatamente se referia. Quando me dei conta, havia deixado totalmente de lado o que fazia — um trabalho cansativo de descarte e arrumação — e me perdido nas palavras de uma outra versão minha. (É sempre intrigante esse encontro de um eu passado com um eu presente).
Percebi o quanto gosto da ideia de parar uma atividade dita necessária, algo que se impõe como prioridade, para fazer algo desnecessário, inútil. Interromper um trabalho para ler diários antigos, abrir aleatoriamente um livro de poesia, caçar num livro uma passagem que veio à mente de forma repentina (ou tomar um picolé).
Enquanto escrevo este texto, me vi no impulso de pegar uns três livros de que lembrei e que gostaria de folhear, buscar palavras, frases, para conversar com o que tento expressar aqui. Mas os livros já estão encaixotados, comprimidos entre folhas de papelão. Empilhados a alguns quilômetros daqui. Inacessíveis. Distantes, ainda que, em alguma medida, estejam comigo.
A presença deles, nas pilhas que faço — e que por vezes efetivamente caem —, me dá consistência, estofo. Preciso dos meus livros por perto, para brechas inoportunas, pausas inapropriadas, pequenos hiatos capazes de me assegurar uma existência abundante, numa doce rebeldia.