Esteja você vivendo a pandemia do modo mais rigoroso ao modo mais relaxado, é certo que a vida mudou. Aqui, claro, não estão incluídos aqueles que escolheram negá-la sob todas as formas. Mas para quem a tem vivido de uma maneira minimamente apoiada na realidade, e que não retomaram a vida dita « normal », há hábitos que parecem ter mudado drasticamente.
Se antes pegávamos carteira, celular, chaves e saíamos tranquilos pela porta de nossa casa, assim como voltávamos e entrávamos por ela quase desavisados, hoje estamos longe disso. Antes de sair, é preciso colocar a máscara; durante uma saída mantemos nossa máscara, passamos álcool gel nas mãos e simplesmente abolimos qualquer tipo de toque nos olhos, nariz e boca. Na volta para casa, especialmente alguns meses atrás, se fizéssemos compras, havia um rigoroso ritual de assepsia dos produtos e alimentos aos saquinhos de plástico, para alguns. Essa parte parece ter mudado um pouco ultimamente.
Um bom exemplo que nos faz dar conta de como os hábitos mudaram é assistir a séries e filmes pré-pandemia. Causa-nos profundo estranhamento ver personagens sem máscara, aglomerados, dividindo copos e talheres, abraçando-se e se beijando despreocupadamente. (Lembro novamente minha ressalva do parágrafo inicial).
Bom, existe uma gestão de risco individual - como diz a pneumologista e pesquisadora clínica Letícia Kawano-Dourado -, ou seja, cada um escolhe em que nível quer/consegue se proteger, de acordo com suas necessidades e possibilidades. Dessa forma, este texto pode soar estranho ou distante para alguns. Mas hoje gostaria de chamar a atenção para como, após praticamente um ano e meio de pandemia, nossa rotina parece ter encolhido e nossos arranjos, antes tão corriqueiros, ficado bastante frágeis.
Com a pandemia, pequenas reuniōes familiares, encontros com amigos - já tão escassos neste período -, ainda que feitos ao ar livre, podem ser cancelados no último instante, se alguém espirra meio de lado, tosse meio assim, tem uma leve dor de garganta. Será covid?! Corre-se para fazer um teste e, quem sabe, marcar um novo encontro no próximo final de semana. Nesses mesmos casos de tosses, corizas e outros sintomas antes banais, àqueles privilegiados, cujas crianças já voltaram às escolas, o mesmo ocorre. Crianças novamente dentro de casa e suspensão de qualquer suporte que se tenha envolvendo pessoas fora do convívio familiar. E assim, o arranjo que foi construído para a vida girar se desmonta.
Com a vacina finalmente chegando a mais pessoas e a vacinação se completando com a segunda dose, com certeza isso vem se atenuando. Entretanto, assim temos vivido há um ano e meio, sob um alerta que, justamente por estar acionado de forma tão prolongada, às vezes parece desativado, mas, na verdade, ele se encontra apenas silencioso, pois segue trabalhando e exigindo de nós um dispêndio de energia e atenção a detalhes para os quais provavelmente nunca havíamos atentado.
Para quem é de Brasília, com o tempo extremamente seco, uma série de sintomas que podem ser da covid já são companheiros há muitos e muitos anos. Nariz entupido, garganta arranhada… Será covid? Esse inimigo invisível e quase onipresente, vai nos empurrando, minimizando-nos, contém nossas possibilidades de lazer, nossas relações, matematiza beijos, abraços e toques.
Encolhemo-nos em nossas casas, às vezes com tanto medo, às vezes "fingindo costume", resignados. As telas permanecem ligadas, estamos trabalhando, conversando virtualmente com quem amamos, tentando nos distrair disso que já dura um ano e meio. Ficamos menos espontâneos, mais alertas, mais sozinhos, mais robóticos, mais virtuais, mais cansados e, talvez, menos humanos.
Parece-me que se dar conta de que continuamos gastando tanta energia no manejo dos riscos da pandemia e vivendo uma vida tão diferente da vida de um ano e meio atrás permita-nos ser mais atentos às nossas necessidades e a buscar, dentro do possível, pequenas alegrias.
Se a seca maltrata nossos olhos, narizes e gargantas, é também durante esse período que Brasília floresce, seus ipês se mostram, tapetes rosas e amarelos se desenham, caliandras e flores da cagaita aparecem, enchendo nossos olhos. As flores do cerrado, ainda que tão sensíveis e frágeis, lembram-nos que pode haver beleza mesmo na adversidade. A fragilidade já conhecemos bem, falta-nos descobrir beleza na secura pandêmica.
Obs.: Dedico este texto à minha querida Helena, que, numa conversa, me lembrou desta coincidência, a fragilidade dos arranjos de flores e dos arranjos da vida.