Há não muitos dias uma forte massa de ar polar chegou ao Brasil. Eu queria dizer "atingiu" porque me parece que acertou como um alvo, agressiva e violenta. Essa frente fria chegou e me mostrou um desamparo que não conhecia. Vejam, tenho casa, teto, cobertor e casaco, mas me senti de alguma forma vulnerável.
Enfrentei invernos mais rigorosos, invernos de temperaturas negativas. Não fiquei doente nem com medo. Tinha também um teto, roupas adequadas, pausas para uma bebida quente e um abrigo aquecido. Mas quando essa massa insana chegou aqui semana passada, me encontrou assustada.
Na primeira noite, prevista como o início das temperaturas mais baixas, acordei quase que de uma em uma hora checando a temperatura, que a cada hora caía em um grau. Tenho por costume olhar a meteorologia praticamente todos os dias, talvez por curiosidade, talvez por uma tentativa de me planejar. Contudo, o despertar constante dessa noite fria era algo diferente, relacionado a uma certa incredulidade.
Ao me dar conta de que a temperatura caía, indo a marcações que não lembrava de ter visto aqui, no breu da noite arregalo os olhos e me pergunto o que estamos fazendo, como humanidade. Onde vamos parar? Lembrei de ter lido durante o dia uma breve explicação sobre o aquecimento global, de que quanto mais calor mandamos para a Antártida, mais frio ela nos enviará. Ação, reação. Me sinto, então, numa distopia.
Junto isso a todas as outras notícias aterrorizantes dos últimos tempos, que me deixam impressão no corpo e no afeto. Fico com a certeza de que estamos mesmo vivendo tempos estranhos, em que muitos acontecimentos radicais e decisivos tomam lugar e em que parecemos paralisados, inertes. Sinto um profundo desamparo. Nessa noite fria, o frio me deixa frágil, quebrantável. E as madrugadas são sempre graves.
Penso na comunidade que se formou perto da universidade com inúmeros barracos, crianças que andam por ali descalças, muitas nuas. Penso no templo obsceno que foi erguido ao lado dessa comunidade. Penso na indecência da miséria, assolada agora - e pelos próximos dias -, por um frio impiedoso. Penso que, na verdade, impiedosos somos nós, impiedosos e desumanos são os governantes que trabalham somente em benefício próprio.
Com a partida da tal massa polar, vejo como ela se antropomorfizou para mim. Virou quase uma visita que passa uns dias e vai embora deixando notícias, advertindo sobre tantas coisas. Há um certo alívio, mas é fato que seu peso e seu volume deixaram uma marca em mim, que ainda me intriga.