Memória, tempo e corpo

Deparo-me com a seguinte frase de Tennessee Williams: Has it ever struck you that life is all memory, except for the one present moment that goes by you so quick you hardly catch it going?. Acho a frase de difícil tradução, mas eu traduziria por algo como "Já te ocorreu que a vida é toda ela memória, exceto pelo exato momento presente, que passa por você tão rapidamente que você dificilmente pode capturá-lo acontecendo?". Ao lê-la, sinto um espanto. É preciso absorvê-la com cuidado. Ela parece simultaneamente óbvia e chocante.

Memória, palavra tão bonita. A relação da psicanálise com a memória é de intimidade. Já lá no início de sua história, nos Estudos sobre a histeria, Freud afirma: "Os histéricos sofrem principalmente de reminiscências.". O trabalho de análise se estrutura, assim, em torno de rememorar, ou, para usar o título de um texto maravilhoso do próprio Freud, de recordar, repetir e elaborar. Pois não basta rememorar dentro de si, é preciso rememorar falando, escutando, se escutando, para então, elaborar.

A frase de Tennessee Williams faz pensar sobre esse registro da memória, que é relação com o tempo. Faz ver como é fenomenal que precisemos investir tanto tempo trabalhando sobre algo que se deu, que ficou para trás, que não pode mais ser revivido concreta e materialmente. O instante-já – expressão de Clarice Lispector de que gosto muito –, no próximo minuto, se tornou passado.

Contudo, se por um lado, o passado está perdido, por outro, é ele que nos constitui e segue tendo poderoso efeito sobre nós. Como lembra Freud:

(...) um sofrimento psíquico que é recordado no estado consciente de vigília ainda provoca uma secreção lacrimal muito tempo depois do ocorrido. (p. 43, Estudos sobre a histeria, Edição Standard).

Sofrer daquilo que passou. Pensava sobre isso tudo quando encontrei o seguinte poema de Arnaldo Antunes:

Saudades

Não tenho saudades
do que vivi
porque tudo
está aqui

encorpado
dentro de mim
como um fígado
um pâncreas
um rim

não tenho saudades
do que vivi
(vi ouvi sonhei senti)
pois já se tornou
o que sou

não tenho saudades
do que vivi
tenho saudades do que viveram
aqueles com quem convivi

não do que vi, do que viram
não do que ouvi, do que ouviram
do que sonharam, do que sentiram
as pessoas que perdi

Photo by Josh Boot / Unsplash

Algo perdido e também incorporado. Gosto do uso que Arnaldo faz do verbo "encorpar", porque coloca o corpo em cena, traz a ideia de que damos corpo ao que vivemos. E, afinal, não damos mesmo lugar ao que vivemos, em nosso corpo — ainda que isso possa acontecer a nossa revelia? As experiências vão se imbricando na pele, por dentro e por fora, fazendo aparecer a dimensão do que Williams aponta, de que a vida é pura memória, de que somos memória.

Por algumas vezes, senti — ainda sinto — um forte estranhamento ao pensar que o meu corpo de hoje é, em alguma medida, o mesmo corpo de quando eu era um bebê. Claro, ele passou por intensas transformações e, de certa forma, não é mais o mesmo. Porém, é também aquele mesmo corpo, do passado, que venho carregando comigo ao longo de todos esses anos. No registro material, não há ruptura, mas na memória parece haver. O que tento dizer é que o tempo segue correndo, segue acontecendo, mas a memória trabalha de outro modo, parece ser efeito do tempo sobre o corpo.

Há momentos, instantes-já que de fato se estabelecem em nossos corpos como verdadeiras marcas, momentos únicos, grande parte das vezes de (des)encontros, de dores, de epifanias. Há tantos outros que passam despercebidos pelo tecido da vida, permanecerão dissolvidos, pulverizados, talvez esmagados entre os grandes acontecimentos — que não necessariamente residem no extraordinário, às vezes, ao contrário, encontram-se na mais absoluta banalidade.

Será que é disso que se trata, multiplicar os instantes que se marcam no corpo? Quanto disso se dá de maneira intencional? Quanto disso se dá exatamente quando estamos distraídos? Talvez tentar agarrar o momento presente, esse tão fugidio, seja um caminho.