O meme diz: “Beba água. Tome sol. Você é basicamente uma planta com emoções complicadas.”. Ele me fisga. De início, trata do aspecto físico, orgânico. Hidrate-se, tome sol. Depois, traz uma ideia mais subjetiva, as "emoções complicadas". Penso então na complexidade humana, naquilo que nos faz humanos, na linguagem, que nos diferencia dos outros animais. Penso em como somos seres de emoções, sentimentos, em como criamos laços, sofremos nas relações, em como rimos, choramos.

Não é fascinante que um acontecimento, uma fala, uma frase, uma música, um gesto, possam nos levar ao suspiro, ao arrepio, ao riso, ao choro? Levam-nos a uma coisa que ultrapassa os limites do corpo, da pele, que rompe com as fronteiras, que surge como evidência de algo que tem origem numa camada profunda e obscura de nós mesmos. Há algo de muito misterioso nisso, no ar que escapa da boca e do nariz, nos pelos eriçados, no líquido que desce dos olhos, nas ondas sonoras que saem pela boca.

É possível olhar tudo isso de um ponto de vista orgânico, médico, neurológico; buscar traduzir nossa complexidade a partir da anatomia humana, das substâncias que correm por nosso corpo. Órgãos, funções cerebrais, hormônios, neurotransmissores... É possível também observá-las por uma perspectiva psicanalítica, que descobriu mais uma camada em nós mesmos; uma camada profunda e enigmática, o inconsciente. Camada essa que só se dá a ver em brechas, lapsos, pequenos intervalos.

Foi justamente a frase de um psicanalista que surgiu no meu caminho, de intenso deslumbramento por aquilo que é humano. Alain Didier-Weill afirma:

Que o humano é o efeito da mestiçagem de substâncias tão heterogêneas quanto o são a materialidade do corpo, a imagem do corpo e o verbo enxertado neste corpo, tal é o ensino cotidianamente concedido ao psicanalista (p. 17, em O artista e o psicanalista questionados um pelo outro, 2014).
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Corpo físico, imagem, palavra. Tudo isso reunido num mesmo bicho. Esse enodamento que se dá no ser humano nos lembra da distância a que estamos de uma "planta com emoções complicadas" – ainda que o meme guarde uma porção de verdade – e mais, nos lembra do trabalho que temos para sermos "simplesmente" humanos, pois ele nos leva a uma espécie de desalojamento em nosso próprio corpo, um verdadeiro mal-estar.

A esse respeito, o mesmo psicanalista nos diz:

Esse mal-estar é a própria expressão do fato de que o homem, após ter-se tornado falante, viu-se despojado da naturalidade que tanto o fascina no corpo do animal: será concebível um cavalo, ou um gato, que dê a impressão de estar mal alojado em seu corpo, de sentir-se apertado nele ou, ao contrário, de nele perder-se? (p. 17, idem).

Esse desencaixe é tipicamente humano. E se a linguagem nos atravessa, transformando radicalmente nossa relação com nosso corpo, é também por meio dela que tentamos dar conta de dizer de nossa complexidade e dos mistérios que guardamos. Mas, por vezes, a palavra não dá mesmo conta e, então, o riso, o choro, o suspiro e o arrepio aparecem, lembrando-nos de que o corpo também fala e inclusive sabe muita coisa antes mesmos de nós.

No texto de Didier-Weill que cito acima, intitulado O artista e o psicanalista questionados um pelo outro, o autor, entre tantas coisas preciosas, fala de como o pintor, o músico, o poeta e o dançarino são como embaixadores do que parece ser esse segredo humano que tem me intrigado, "o inaudito, o invisível e o imaterial".

Espero que esse segredo seja mantido, que não nos desvendem por meio de uma máquina de ressonância magnética avançada. Que os artistas permaneçam usando como motor esse enigma, que continuem pintando, dançando, fazendo música e poesia. Continuarei observando, maravilhada, seduzida e muito humana.