Há tempos venho ensaiando, ou melhor, rascunhando um texto sobre poesia. Em tempos de produtividade, performance, desempenho, utilitarismo e empreendedorismo, falar de poesia pode soar quase absurdo. Em tempos que flertam escancaradamente com a violência, a brutalidade, o sadismo e a destruição, a poesia pode ficar ofuscada. Justamente por isso, fico querendo falar mais e mais de poesia. Sua inutilidade é refúgio e respiro; virou, para mim, item de sobrevivência.

Se me perguntassem o que é poesia, eu responderia não a partir de definições técnicas, conceituais, mas a partir de um lugar justamente poético. Nada melhor que tomar emprestadas palavras de um poeta. Assim, pesco um texto de Manoel de Barros que eu amo e que parece dizer bem do que se trata:

Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regência verbais. Ela falava de sério. Mas todo-mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir. De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia a nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena, não me escreve / que eu não sei a ler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro. (Cabeludinho, em Memórias inventadas).

Uma preposição deslocada, uma regência modificada, palavras desengavetadas. Palavras para brincar e não para trabalhar. A poesia se lê com o corpo, se lê a partir de outro lugar. É possível ouvir uma poesia num idioma que não se fala e ficar emocionado, porque como diz Manoel, na poesia as palavras entoam muito mais do que informam. Trata-se de ritmo, de prosódia, e por que não, de melodia. Trata-se das palavras que entram pelos ouvidos e tocam o corpo.

Num âmbito mais "técnico", penso nas figuras de linguagem, que sempre me fascinaram, pois são exemplos de recursos que se podem utilizar para promover os mais diversos efeitos com as palavras. Figuras semânticas, sintáticas, sonoras, de pensamento. Metáforas, metonímias, perífrases, catacreses, anáforas, inversões, silepses, paradoxos, ironias, aliterações, onomatopeias... Um universo de termos difíceis que guardam infinitas possibilidades de fazer poesia.

Mas a poesia tem tamanha potência, que não está somente nas palavras; pode emergir das coisas, dos gestos. Tem uma capacidade de transformar o ordinário, o doméstico em algo extraordinário e prenhe de sentidos e sensações. Manoel de Barros mesmo, poeta do ínfimo, do insignificante, vê poesia numa pedra, numa formiga.

A poesia pode nos arrebatar, tomar-nos num instante, num de repente, surpreendendo-nos e, por vezes, até nos assustando. Talvez trate-se de uma espécie de portal, que se abre apenas em furos, rasgos que se produzem num "instante-já", para usar uma expressão de Clarice Lispector. Um instante que nos faz olhar pequenas banalidades e vê-las cheias de cor e novos sentidos.

Não sei se é possível acessar esse lugar poético quando ou sempre que se quer. Contudo, penso que podemos, em certa medida, facilitar esse caminho. Se podemos fazer efeito de poesia deslocando preposições, modificando a posição de palavras, estamos falando de lugar, de espaço. Talvez, para alcançarmos uma espécie de "estado de poesia", que nos possibilite lançar um olhar renovado para o que está ao nosso redor, precisemos nos mover, nos deslocar, olhar as coisas sob outros ângulos, mudar de posição assim como uma preposição, que, vejam só, já guarda em si uma "posição".

De novos ângulos, o mundo pode ganhar novas e profundas dimensões, nos fazendo querer falar de poesia e, quem sabe, transformar as coisas.