Um dia desses, fui acometida por uma tremenda saudade. Enquanto lia e fazia anotações, senti uma saudade avassaladora do meu avô, que já faleceu há mais de 20 anos. Fiz uma breve pausa e me deixei ser atingida por essa onda nostálgica, que me levou ao passado em poucos segundos. Logo me perguntei qual elemento do presente havia provocado tão repentina viagem.
A única coisa que me ocorreu é que eu havia escrito o ano de meu nascimento e talvez isso, apenas isso, tivesse sido suficiente para acionar em mim lembranças de um passado tão distante. Nunca saberei ao certo, mas essa sensação já me intriga há tempos.
Por diversas vezes, me flagro lembrando de alguém ou de algum acontecimento nos momentos mais (aparentemente) desconexos e corriqueiros. Realizando atividades domésticas, dirigindo, atravessando a rua, lendo um livro, lembro-me de alguém que não vejo há muitos anos, alguém com quem nem mesmo tive proximidade, pessoas que por algum motivo fortuito cruzaram meu caminho. Um instante do presente capaz de levar a uma cena do passado, não importando quão longe ela esteja no tempo ou no espaço.
Mas as situações mais fascinantes são aquelas como essa recente, em que me lembro de alguém muito próximo e sou transportada a um determinado lugar, numa época específica. Mais que isso, sinto a atmosfera daquele instante, um clima, algo subjetivo e vívido, uma sinestesia, quase como se eu pudesse pegar o tempo nas mãos.
No texto Nota sobre o "Bloco Mágico", de 1925, Freud faz uma analogia entre o brinquedo homônimo e o aparelho psíquico perceptivo. No dispositivo em questão, tem-se uma pequena tábua de cera sobre a qual há uma folha fina e translúcida. Essa última possui duas camadas, uma película de celuloide transparente e outra que é um papel encerado. Não se desenha no Bloco depositando algo sobre a folha, como com um lápis ou um giz, e sim fazendo sulcos, marcando a superfície com um objeto pontiagudo. Caso se queira apagar o que foi desenhado ou escrito, basta levantar a dupla folha e o espaço fica disponível para novos traços.
Freud destaca que ao se observar atentamente o Bloco Mágico, "(...) facilmente se constata que o traço duradouro do que foi escrito permanece na tabuinha de cera e pode ser lido com uma iluminação adequada (p. 272, ed. Cia das Letras)". As inscrições permanecem ali. Nesse ponto ele estabelece uma comparação com o aparelho psíquico, dizendo que a camada que primeiro recebe os estímulos seria como o sistema perceptual-consciente, que não mantém traços duradouros. As bases das memórias e lembranças se encontram em outros sistemas, mais "profundos".
Dessa maneira, acontecimentos que parecem ter sido esquecidos, na verdade estão registrados em outra camada. São o que ele chama de "traços mnemônicos". Desse modo, nada seria esquecido. Apesar disso, Freud nos lembra de que tais traços não são inalteráveis. Ele afirma que nosso aparelho psíquico:
(...) tem ilimitada capacidade de receber novas percepções e cria duradouros - mas não imutáveis - traços mnemônicos delas (p. 269, edição Cia das Letras).
Mutável e duradoura, a memória guarda um potencial extraordinário. Um elemento atual promove uma costura entre presente e passado, do mesmo modo que Freud afirma que passado, presente e futuro estão entrelaçados pelo fio do desejo. Pode-se pensar, então, que assim como um fio d'água tende a passar sempre por onde antes um curso d´água já passou, pelos sulcos deixados na terra; um processo semelhante ocorre com a memória. Um componente do presente coloca em ação traços mnemônicos, fazendo emergir reminiscências.
Em certa medida, já dispomos, então, da habilidade de viajar no tempo. Talvez não possamos ativar tal capacidade a nosso bel-prazer, mas nossa própria memória, esse bloco verdadeiramente mágico, guarda em si um túnel do tempo, capaz de nos levar para lugares e épocas os mais distantes, em questão de segundos. Ainda não conheço meio de transporte mais potente.