Ontem soube que sairá um novo livro de Elena Ferrante, escritora de que gosto muito. A notícia é tão fresca que só encontrei o título em italiano, I margini e il dettato. Conversazioni sul piacere di leggere e scrivere, que o Google traduz como "As margens e o ditado, conversas sobre o prazer de ler e escrever". Trata-se não de um romance, mas, ao que parece, da reunião de quatro textos de Ferrante sobre a "aventura de escrever". Já aguardo ansiosa pelo seu lançamento por aqui, ainda que estivesse desejosa de ler um novo romance da autora.

Nos últimos tempos, tenho visto muitos e muitos livros sobre leitura e escrita, dos mais diversos autores, livros novos e antigos. Fiquei pensando muito sobre isso, o que há nesse processo de ler e escrever, o que há de tão interessante e complexo aí que leva tanta gente a ler e a escrever sobre tal assunto.

Quando falamos de literatura, do que estamos falando senão da linguagem, de palavras? Somos seres complexos, nos diferenciamos dos outros animais justamente pela linguagem. Quando bebês, dentro da barriga de nossas mães, estamos imersos no líquido amniótico, mas também já imersos na linguagem, sendo falados por nossos pais e por aqueles que estão ao nosso redor; marcados pelas palavras que escolhem para nós, para que depois - tudo indo bem-, possamos nós mesmos escolher nossas palavras.

É então que passamos a tentar dar conta de nossa complexidade, de ser bicho e também não ser; dar conta de nós mesmos e da realidade com palavras, abarcar nossas ambiguidades, seja escrevendo, seja lendo. Tentamos concatenar ideias, dar lugar para o que no fundo não tem nome, tentamos dar sentido para o que tantas vezes não tem.

A linguagem guarda essa enorme contradição, ela é que nos permite falar do mundo, falar da vida, dizer das coisas. Ela nos dá essa possibilidade preciosa. Mas também a ela estamos alienados, quase que impossibilitados de dizer o que a ultrapassa, o que está além ou aquém dela. Lembro-me da ideia do "umbigo do sonho" trazida por Freud na Interpretação dos sonhos, aquele ponto em torno do qual o sonho parece girar e que restará sempre indizível, que ficará mergulhado na obscuridade. Nenhum sonho será jamais totalmente interpretado, ficará sempre algo por se dizer.

Sorry my weekend is all “booked”
Photo by Rey Seven / Unsplash

Ler e escrever. Ler para, quem sabe, (re)encontrar, (re)descobrir nossas palavras, encontrar-se nas palavras do escritor, do autor. Como diz Virginia Woolf,

(...) os próprios poetas e romancistas em suas formulações espontâneas, muitas vezes mostram uma admirável pertinência; iluminam e solidificam as ideias vagas que tropeçavam nas nebulosas profundezas de nossa mente.

Escrever para inventar nossas palavras, encadeá-las, organizá-las numa certa ordem que faça sentido para nós, escrevê-las de um modo a alcançar nuances que desafiem (im)possíveis limites da linguagem. O escritor está todo tempo, como também nos lembra Woolf, exposto à vida, afetado por tudo que observa, do evento mais extraordinário à banalidade mais corriqueira, para, ao fim do dia, converter e transformar suas impressões em um "tecido artístico".

Por diversas vezes em sua obra, Freud dialogou com a literatura, partiu dela para fazer formulações, investigações. Tinha consciência de que ela tinha muito a ensinar à psicanálise, precedendo-a, apontando caminhos a serem investigados, revelando a complexidade da alma humana. Em 1907, ele afirma:

(...) os escritores são aliados valiosos e seu testemunho deve ser altamente considerado, pois sabem numerosas coisas do céu e da terra, com as quais nem sonha a nossa filosofia [aqui, ele se utiliza justamente de um escritor, de Shakespeare, em Hamlet]. No conhecimento da alma eles se acham muito à frente de nós, homens cotidianos, pois recorrem a fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência.

Livros e livros continuarão sendo escritos por aqueles que se sentem impelidos, talvez demasiado instigados e incomodados para descansar enquanto a vida fica por se dizer. Escreverão porque simplesmente não podem não escrever. Livros e livros continuarão sendo lidos, por aqueles cujas vidas íntimas são inquietas, agitados por uma curiosidade incansável, uma angústia que é por si sem nome. Lerão porque não podem não ler. Escrever e ler, fazeres inescapáveis.