Nesse momento, presenciamos mais uma guerra. A Rússia invadiu a Ucrânia no último dia 24 e de ontem para hoje intensificou seus ataques. Uma guerra como essa - entre tantas outras que seguem acontecendo sem a devida cobertura da mídia - sempre traz à tona uma série de perguntas. Pois, se por um lado avançamos tanto em termos de ciência, tecnologia, encurtando o tempo e as distâncias, vencendo doenças, prolongando a vida; por outro, promovemos guerras abreviando inúmeras vidas e expondo a face mais desumana do homem.

Está longe do meu objetivo fazer uma análise geopolítica dessa crise, meu propósito aqui é apenas tentar trazer alguma luz para a compreensão do fenômeno da guerra, tomando como partida um pouco do que Freud escreveu sobre o assunto e que continua assustadoramente atual.

Freud presenciou as duas grandes guerras. Na última, como judeu, torna-se refugiado, quando em 1938 vai para Londres, onde fica até o fim de sua vida, pouco mais de um ano depois. Há dois textos em que ele trata especificamente do tema, um intitulado « Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte », que data justamente da época da Primeira Guerra; e outro, provavelmente mais conhecido, chamado « Por que a guerra? », de 1933. Esse último é fruto de uma troca de cartas com Albert Einstein.

Após a Primeira Guerra, como parte do Tratado de Versalhes, é criada a Liga das Nações, uma organização cujo objetivo era impedir novas guerras e assegurar a paz. Em 1932, a Liga, por meio de seu Instituto Internacional para Cooperação Intelectual, convida Einstein para um projeto de troca de cartas entre intelectuais renomados. Einstein escolhe Freud para um debate sobre a guerra. Em sua carta ao psicanalista, o cientista coloca diferentes questões, que - não deixa de espantar - permanecem, mais do que nunca, relevantes. Dentre elas:

(...) há um caminho para libertar os seres humanos da fatalidade da guerra? (p. 421, editora Autêntica).

Freud coloca que uma prevenção contra as guerras seria a construção de "(...) um poder central ao qual será transferido o direito de arbitrar em todos os conflitos de interesse (p. 432).". Porém, como o autor já nos dizia em Psicologia das massas e análise do eu, texto de 1921, o que pode manter um grupo coeso é o uso da violência e as identificações entre seus membros. Quando falamos de países, nações, é justamente isso que está em jogo, comunidades, aquilo que há em comum dentro de um povo, do que é (com)partilhado, raízes, história, costumes, ideais. Aí temos os laços afetivos, que fortalecem um povo e que o tornam, por exemplo, capaz de dar a vida por seu país.

São exatamente esses ideais nacionais o grande obstáculo para que seja instituída essa "autoridade unificadora". É quando, então, se recorre à guerra. E como afirma Einstein, em sua carta a Freud, para haver segurança nacional, é necessário que os Estados renunciem à sua soberania, "a uma parte de sua liberdade de ação".

Esse me parece um dos pontos fundamentais na discussão sobre a guerra, pois fala de um princípio já trazido por Freud no Mal-estar na cultura. Para que se viva em sociedade, é preciso que cada indivíduo faça renúncias pulsionais, isto é, abra mão de uma parcela de satisfações, para dizer resumidamente. Em outras palavras, há um preço para que a coletividade funcione, o coletivo se sobrepõe ao individual. Essa mesma regra se estende então quando falamos das relações entre diferentes países. Para que haja paz é fundamental que se renuncie a algo. Deve haver custos para todos os envolvidos.

Já que falamos em renúncias pulsionais, é importante destacar este outro aspecto trazido por Freud em sua resposta a Einstein, que, por sua vez, levanta a questão de um aspecto destrutivo no homem, referindo-se à pulsão de morte. Freud concorda com o cientista dizendo que um dos motivos pelos quais seria "fácil" (aspas minhas) incitar as pessoas à guerra é a existência do que ele chama "pulsão de odiar e aniquilar", mas enfatiza que as pulsões de vida, ou sexuais (referida a Eros, que tende a aglutinar, conservar, unir) e de morte (ligadas a destruir, matar) estão sempre mescladas. "(...) da ação conjunta e antagônica de ambas que surgem as manifestações da vida (p. 434.).", elas não se manifestam em estado puro.

Quando, portanto, os seres humanos são incitados à guerra, deve haver um bom número de motivos com que eles devem concordar, nobres e maldosos, sobre os quais falamos abertamente, e outros sobre os quais calamos. (...). O prazer na agressão e na destruição certamente está entre eles; incontáveis crueldades da história e do cotidiano confirmam a sua existência e a sua força (p. 435).

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Por fim, Freud faz a pergunta intrigante, se não há perspectiva de abolir as tendências destrutivas do ser humano, por que continuamos nos espantando e indignando diante da guerra? Considero válido transcrever a resposta, pois ela poderia ser de fato escrita hoje, no ano de 2022:

(...) porque todo e qualquer ser humano tem o direito à sua própria vida, porque a guerra aniquila vidas humanas cheias de esperança, coloca cada um dos seres humanos em situações que o degradam, obriga-o a assassinar outros, o que ele não quer, destrói valores materiais preciosos, resultados do trabalho humano, e muitas outras coisas. E também porque a guerra, em sua configuração atual, não oferece mais a oportunidade de realizar o antigo heroico, e porque uma guerra futura, em consequência do aperfeiçoamento dos meios de destruição, poderia significar a exterminação de um ou talvez dois adversários (p. 439).

Junto a isso, ele nos lembra de que o processo cultural que vivemos leva a grandes alterações psíquicas, permitindo-nos deslocar e restringir moções pulsionais e assim tornar mais fortes nossa capacidade intelectual e interiorizar a agressividade, isto é, desviá-la do exterior e fazer outra coisa dela.

Tudo o que estimula o desenvolvimento cultural também trabalha contra a guerra (p. 441).

Destaco que essa conversa entre Freud e Einstein ocorreu antes da invenção da bomba nuclear, arma cujo acionamento o presidente russo colocou em alerta há cerca de uma hora.  Assim, o que o psicanalista levantou como possibilidade de extermínio "de um ou talvez dois adversários" ganha outra radicalidade, pois passamos a falar da possível destruição da vida humana na Terra.

Desse modo, infelizmente, a guerra na Ucrânia segue em curso. Por enquanto, ficam aqui os apontamentos e reflexões de Einstein e Freud para esse fenômeno tão terrível e desumano que é a guerra, assim como indicações de caminhos possíveis para evitá-la. Quero crer que, como afirma Svetlana Aleksiévitch em A guerra não tem rosto de mulher, "O ser humano é maior do que a guerra".